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domingo, agosto 28, 2005

Entrevista: César Benjamin

Dados pessoais
Nasceu no Rio, filho de um coronel do Exército e de uma química, tem 51 anos, solteiro, três filhos
Carreira

Cinco anos como preso político, exilado na Suécia, fundador e ex-dirigente do PT
Atividades atuais

Editor da Contraponto e coordenador do movimento Consulta Popular

Voltou ao Brasil em 1978, atraído pela distensão do regime e pela novidade de um líder operário que levantava o ABC paulista. Hoje, Cesinha tornou-se uma espécie de oráculo de uma crise em que boa parte dos intelectuais de esquerda segue mergulhada em catatônico silêncio. Seu artigo - "O Mito do Paraíso Perdido" - publicado na Folha de S.Paulo no início de agosto causou furor pela crueza com que exibiu o ovo da serpente da crise. Mas Cesinha trouxe ainda uma novidade nestes tempos em que a agonia do PT soa como as trombetas do Apocalipse: ele anuncia que a esquerda não acabou.
Depois de romper com o PT há 10 anos, acusando-o de corrupção, Cesinha foi um dos artífices de uma organização batizada de Consulta Popular. Com milhares de militantes pelo Brasil afora, a CP apostava no fracasso do 'ciclo Lula' e prepara, desde 1997, uma alternativa política. Para seus quadros, é agora que o povo poderá chegar ao poder. Melhor profeta do passado que do futuro, Cesinha delineia um caminho ainda vago. De concreto, ele preparou um programa para o PMDB a pedido de seu amigo Carlos Lessa, ex-presidente do BNDES no governo Lula. E tem recebido efusivos elogios do pré-candidato à Presidência em 2006 Anthony Garotinho. Esta é a parte que arrepia seus mais novos fãs.
O irônico é que Cesinha vem dizendo o que diz há uma década. Mas só era ouvido em espaços alternativos. A crise instalou este genuíno homem de esquerda no centro do debate nacional. Até pouco tempo atrás, ele seria considerado um brontossauro para quem se acostumou ao figurino domesticado do PT. Uma parte da direita o aplaude por sua crítica demolidora ao PT, e a esquerda o aclama porque Cesinha anuncia que ela não acabou.
Autodidata brilhante, ele só concluiu o ginásio. Construiu seu conhecimento numa coleção pessoal de 3 mil livros e milhares de outros em bibliotecas alheias. Tornou-se um pensador consistente e um oponente intelectual que poucos se dispõem a enfrentar. Na prisão, adolescente, traduzia obras de filósofos como Althusser para passar o tempo. Adulto, tem sua própria editora, a Contraponto, no Rio de Janeiro. Dedica-se agora a traduzir os 300 ensaios sobre pensadores do Dictionary of Scientific Biographies. Pai solteiro, vive com os dois filhos mais velhos. Costuma dormir no final da tarde, depois vira a noite trabalhando. Lê até os passarinhos cantarem. Ele deu a seguinte entrevista a ÉPOCA.

ÉPOCA - Você foi fundador do PT e dirigente nacional até 1995, quando rompeu por discordar do financiamento da campanha de 1994. Como foi?

César Benjamin - Soube que houve financiamentos de bancos e empreiteiras que nunca haviam sido discutidos pela direção. Havia uma claríssima evidência de prática sistemática de caixa dois. Levei a questão ao encontro nacional do partido, no Espírito Santo, onde havia quase 800 delegados. Fiz um pronunciamento da tribuna. Disse que estávamos diante do ovo da serpente. Vi o Zé Dirceu levantar e ficar de frente para o plenário. Em seguida houve uma troca de gestos entre ele e delegados do ABC paulista. Este grupo se levantou e partiu para cima de mim para interromper o pronunciamento.

ÉPOCA - Na porrada? Quem eram?
Benjamin - Eram umas 20, 30 pessoas. Vieram para me dar porrada. Lula estava lá, não participou mas não impediu. Meus amigos levantaram, foi uma confusão. A convenção foi interrompida. Lembro que se juntou a esse grupo o (Antônio) Pitanga, do Rio, marido da Benedita (da Silva), mas era um grupo de Santo André. Olha Santo André aí.

ÉPOCA - Emblemático, não é?
Benjamin - É. Até onde eu sei, esse tipo de prática começou no início dos anos 90, quando o Delúbio Soares era o representante da CUT no FAT. Começou ali um zunzum sobre desvio de recursos. Eu me desfiliei no momento em que essas figuras lombrosianas como Delúbio e Silvinho (Pereira) entraram na direção nacional. Um grupo sem nenhuma luz própria. Nenhum deles diz 'a' com 'b'. Foram trazidos pelo Lula e pelo Zé Dirceu e para mim ficou claro que havia um aval de ambos para que essa prática se difundisse dentro do PT.

ÉPOCA - Como funciona a dobradinha Lula-Zé Dirceu?

Benjamin - Qualquer um que conhece os dois sabe que o Delúbio não fez nada que não tenha sido autorizado pelo Zé Dirceu. E o Zé Dirceu não autorizou nada de que Lula não tivesse conhecimento. Qualquer um que tenha convivido com eles sabe qual é a cadeia de comando. O que aconteceu no governo foi a aplicação de práticas que existem há 15 anos no PT e na CUT - sempre dentro do círculo íntimo do Lula. Imagine o deslumbramento do Delúbio ao ser colocado em uma delegação brasileira, sentado na mesa com o presidente e com os ministros e negociando com um governo estrangeiro. Tudo registrado em fotos na imprensa, como aconteceu. É o paraíso do tesoureiro. O que o presidente está dizendo com isso? Esse é o meu homem.

ÉPOCA - Você fala que o PT se pretendia o partido original. O Lula seria o homem original? Foi esse o fascínio?
Benjamin - O povo começou a aparecer na História do Brasil no século XX. O país foi organizado para ser uma empresa exportadora de mercadorias. Para ter mão-de-obra, não povo. No entanto, o Brasil contemporâneo é urbanizado, a população cresceu, tem acesso à informação. Tudo isso faz com que o povo brasileiro ganhe um novo estatuto e force sua entrada na História. Passamos a ter uma enorme necessidade de aparecimento de uma liderança que representasse isso. E no fim dos anos 70, com a ditadura fraca, aparece o Lula, que tem todo physique du rôle dessa tarefa. Migrante nordestino, pobre, operário metalúrgico, sindicalista em São Paulo. Apareceu o messias. Ocorre que o Lula é um erro. Tem todas as características do líder, mas não é esse líder. Na Idade Média também houve muitos Cristos falsos.

ÉPOCA - Quando o Lula dá sinais de que não é esse líder?
Benjamin - Em 1989, o Lula não ganhou a eleição porque não quis ganhar contra as elites. Tinha ultrapassado o (Fernando) Collor com uma curva ascendente, e o Collor estava com uma curva descendente. Quando o Lula entrou no último debate e se entregou, ele estava dizendo: nestas condições eu não quero. Ele percebeu que seria uma posse presidencial numa situação de crise. Não agüentou isso. Não teve estatura para ganhar uma eleição contra a elite.

ÉPOCA - Mas seu abatimento não se devia ao caso Luriam?
Benjamin - Não. Ele fez uma opção. E a partir dali começou a construir as pontes com a elite. Mas esse processo demora alguns anos. Ele tem de dar sucessivas demonstrações de confiabilidade e, principalmente, tem de mudar o PT, que precisa ficar menos militante. A partir daí se introduz no partido o circuito do dinheiro. As campanhas se tornam cada vez mais caras e, se faltam militantes, compram-se. Onde existe muito dinheiro? Entre os ricos. Foi um processo de adaptação do PT ao figurino que o Lula precisava para chegar ao poder apoiado pelas elites. Hoje o PT não tem condição de se auto-reformar porque a rede de cumplicidade tornou-se grande demais.

ÉPOCA - Você acha que esse processo gerou o cadáver do Celso Daniel?
Benjamin - Não acho, tenho certeza. Este foi o físico. Há os cadáveres morais circulando por aí.

ÉPOCA - Qual é a herança que o Lula deixa, em sua opinião?
Benjamin - O Lula foi um líder que sinalizou valores negativos. Como se orgulhar de não estudar, ter uma vida folgada, com muita mordomia. Com isso há um processo de seleção negativa. As melhores pessoas vão se afastando ou vão ficando na obscuridade, e as piores pessoas vão subindo. Nestes dez anos foi formada uma geração de militantes cuja característica é o individualismo, o pragmatismo, a idéia da carreira. É uma situação inédita na esquerda brasileira, que cometeu muitos erros ao longo da sua história. Mas nunca teve uma liderança corrompida. Prestes, João Amazonas, Brizola podem ter cometido equívocos, mas deixaram uma herança moral.


ÉPOCA - E agora é o fim?
Benjamin - A operação política mais perigosa em curso era a polarização entre o PT e o PSDB. A democracia brasileira seria resumida ao confronto entre a Pepsi-Cola e a Coca-Cola, dois projetos essencialmente iguais. Se você controla só o governo e não controla a oposição ao governo, a sua hegemonia está sempre sob risco. Mas você consolida sua hegemonia quando controla simultaneamente a oposição e o governo. A crise do governo Lula abre uma oportunidade para que possamos reconstruir um projeto alternativo, cujo contorno ainda não está claro. Para mim, a crise é uma possibilidade de superação.

ÉPOCA - Ao contrário da maioria, você diz que o governo é mais conservador na política que na economia. Por quê?
Benjamin - O governo Lula cumpre uma função que nenhum governo de direita poderia cumprir, que é a de paralisar os movimentos populares. Criticar só a política econômica é uma maneira implícita de absolver o governo. Como se a política econômica fosse um acidente, que está ali mas não deveria estar. Não. A política econômica está ali porque deveria estar ali. É um governo conservador. E isso se expressa mais na relação com o povo. A aliança que o Lula quer fazer com o povo é pré-política: 'Fiquem comigo porque eu já fui pobre um dia'. Despolitiza o povo. Faz ele caminhar para trás, e não para a frente. ''Desde a Constituição de 1988, são os mais pobres que decidem a eleição com o voto do analfabeto. A tragédia do Brasil é que desde o fim da ditadura os mais ricos conseguem reciclar a cada quatro anos a aliança com os mais pobres ''

ÉPOCA - Você diz que o governo Lula recicla a aliança dos mais ricos com os mais pobres. O que significa?
Benjamin - O sistema de poder no Brasil está organizado de maneira que as forças supranacionais, que representam os credores, ocupam o Banco Central e o Ministério da Fazenda. As demandas subnacionais, algumas legítimas, como a dos Estados, outras de lobbies, se expressam no Legislativo. Para os pobres se faz alguma política social que não os tira da pobreza. O Lula encontrou esse sistema de poder já pronto e, em vez de alterá-lo, radicalizou-o. Seu presidente do Banco Central é mais vinculado ao sistema financeiro internacional que os anteriores, as negociações no Congresso foram mais fisiológicas que as anteriores e a política social é o Bolsa-Família. Neste arranjo ninguém cuida da nação. As grandes questões nacionais não são sequer percebidas e são elas que vão definir o que o Brasil será no século XXI. A tragédia é que os mais ricos conseguem reciclar esta aliança com os mais pobres a cada quatro anos.

ÉPOCA - Como o Lula, que tanto falou em refundação, vai para a História?
Benjamin - No grupo de brasileiros que tem como patrono Silvério dos Reis (traidor que delatou a Inconfidência Mineira no século XVIII).

ÉPOCA - E o que acontecerá com o PT?
Benjamin - O PT vai ter muita dificuldade para se reciclar porque está sem discurso. Não pode mais fazer o discurso contra a política econômica neoliberal porque foi governo e adotou essa política. Não pode mais fazer o discurso da ética da política por motivos óbvios. Então o PT se tornou um partido que não tem o que dizer à sociedade brasileira.

ÉPOCA - Você fez um projeto para o PMDB e é elogiado pelo Garotinho. Por acaso é por aí que você vê uma saída?
Benjamin - Eu sou muito amigo do Carlos Lessa. Ele recebeu da direção do PMDB a incumbência de apresentar um programa ao partido. Me chamou para ajudar. Fizemos juntos um programa antineoliberal. Mas o PMDB, como se sabe, é um partido com dificuldades internas. Não compartilho da histeria anti-Garotinho, mas minha relação é com o Lessa. Não sou filiado. Se o P-SOL me chamar para ajudar no programa, ajudo com prazer. O importante é formar uma forte frente antineoliberal para 2006.

ÉPOCA - Em quem votou em 2002?
Benjamin - Meu filho Téo, então com 14 anos, insistiu muito que eu votasse no Lula. Eu disse que não votaria. Ele entrou comigo na cabine e votou no Lula no meu lugar. Não quis desfazer o sonho dele. Agora está arrependido do voto.

ÉPOCA - Você tinha a mesma idade quando ficou clandestino. Como foi?
Benjamin - Eu participava do movimento estudantil. Em setembro de 1969, a polícia foi a minha casa. Eu havia saído de bermudas e sandálias, sem um tostão, para dar aula de matemática a um primo. Minha avó me avisou por telefone para não retornar. Como ela era cega, a polícia afrouxou a vigilância sobre ela. Me liguei à resistência, no antigo MR8. Só voltei para casa dez anos depois.

ÉPOCA - Como você agüentou a solitária? Pensou em suicídio?
Benjamin - Minha cela era semi-subterrânea. A porta era de ferro maciço. Depois de um tempo, minha família conseguiu me enviar um tabuleiro de xadrez. Joguei milhares de partidas contra mim mesmo. Depois entrou um livro de ioga, do Professor Hermógenes, e me dediquei a ele. Mais tarde tive autorização para receber um livro por semana. O primeiro foi Grande Sertão: Veredas, do Guimarães Rosa. Chorei da primeira à última página. Só pensei em suicídio na fase de interrogatório. Numa noite o soldado que me vigiava dormiu e, apesar de algemado, consegui subir num muro interno. A chance era me jogar de ponta-cabeça. Fiquei em pé por algum tempo, mas decidi que o ônus da minha morte teria de ser da repressão, e não meu. Consegui descer. Me senti fortalecido.

ÉPOCA - É verdade que o Sylvio Frota (ministro do Exército de Geisel, exonerado em 1977 por tentativa de golpe à direita) garantiu sua vida?
Benjamin - Depois de uns três meses de prisão, em 1971, colocaram-me numa sala, na Polícia do Exército, no Rio. Entrou um oficial mais velho, chamado de Vossa Excelência pelos demais. Ficou sozinho comigo, muito branco, fumando uma piteira. Conversou calmamente comigo, dizendo que nunca nenhum outro preso o havia visto. Depois disse: 'Vim te trazer uma boa notícia. Não vamos te matar. Foi uma decisão difícil'. Em seguida, deu três razões: 'Você é muito jovem, e nós não somos os monstros que vocês imaginam. Além disso, você é filho de um colega nosso, e seu pai sempre foi um bom oficial. Mas o mais importante é que você não nos odeia. Nós te observamos muito, e nunca vimos ódio em teu olhar'. Muito tempo depois, reconheci pelos jornais que era o general Sylvio Frota.

ÉPOCA - A construção do seu discurso é marxista. Você fala em ciclos da História, como se o futuro fosse previsível. A vida não é incerteza?
Benjamin - Tenho uma formação vasta e eclética. Não me sinto amarrado por nenhuma teoria. Tentei aprender a pensar, que é algo bem mais difícil do que se imagina. Não acho que o futuro seja previsível. É uma criação humana - e nós somos seres vocacionados para a liberdade.
Fonte: Época