Arnaldo Jabor em O Globo
Quem sou eu? Quem sou eu para peruar sobre uma “nova esquerda” no país? Mas, espero, espero, e ninguém diz nada... Os intelectuais que, deslumbradamente, legitimaram o Lula, nos últimos 20 anos, repetem os diagnósticos sobre o mundo capitalista mas, na hora de traçar um programa econômico-político para o Brasil, temos o “silêncio dos inocentes”. Podem procurar nos artigos dos últimos dez anos: não há uma só linha sobre como mudar a economia para além do projeto Malan-Palocci e a bendita “herança maldita”. Xingam o “neoliberalismo”, juros altos mas, além de slogans de “rupturas” sem base politica, não têm alternativas.
A autocrítica da moda agora na Academia é que o governo Lula “não politizou” os conflitos de classe, não passou por cima do Congresso e não fez uma democracia plebiscitária direta, a exemplo do Chavez — visto como “grosso”, mas “interessante”. O extraordinário em intelectuais é que eles não se preocupam com o detalhe de dizer “como” fazer tais rupturas. Criam programas políticos impraticáveis com a tranqüilidade dos ociosos ou ficam quietinhos relendo Marx em alemão. Ou chorando com a crise de sua fé religiosa.
Eles não têm de criticar erros do governo ou do PT; têm é de fazer autocrítica sim, pelo auto-engano olímpico de ignorarem o óbvio. Uma pergunta que não cala: “Como é que os intelectuais marxistas puderam heroificar tanto a subida do PT, sem imaginar a hipótese de que um bando de loucos poderia invadir o governo e se destruir, destruindo-o?”. Falem de si, façam autocrítica, como aquele bravo dirigente chinês que berrava: “Sou um cão imperialista, sou o verme dos arrozais!...” É assustador, quase maravilhoso, vermos que as críticas da esquerda à esquerda também estão erradas.
No Brasil, a palavra “esquerda” continua o ópio dos intelectuais. Pressupõe uma “substância” que ninguém mais sabe qual é , mas que “fortalece”, enobrece qualquer discurso. O termo é esquivo, encobre erros pavorosos e até justifica massacres.
A Academia e pobres pensadores como eu temos de acabar com o raciocínio metafisíco-economicista do “que fazer”, partindo do Geral para o Particular, de Universais para Singularidades. As grandes soluções impossíveis amarram as possíveis. Temos que encerrar reflexões dedutivas e apostar no indutivo, sair das macro-soluções e aceitar as “micro”. O discurso épico tem de ser substituído por um discurso realista, possível e até pessimista. O pensamento da “esquerda metafísica” tem de dar lugar a uma reflexão mais testada, mais sociológica, mais óbvia, mais cotidiana. Weber em vez de Marx, Sergio Buarque de Holanda em vez de Florestan Fernandes, Tocqueville em vez de Gramsci.
Além disso, nosso pensamento progressista tem de ser local, brasileiro, dentro do vento do tempo. Idéias que servem para outros países podem não nos servir. Não tem cabimento ler Marx em alemão durante 40 anos e aplicá-lo como um emplastro salvador sobre nossa realidade patrimonialista e oligárquica.
Temos de questionar o sentido desse conceito secular — “esquerda”. (Atenção, caros inimigos, não estou dizendo que a “direita” — arghhh... — é certa. Estou falando em revisão (revisionismo, sim) do repertório e de códigos para reorganizar politicamente o desejo de mudança social.)
De cara, temos de assumir o fracasso do socialismo real. Quem tem peito? Como abrir mão deste dogma de fé? A palavra “socialismo” (mesmo que fosse possível hoje em dia) nos amarra a um “fim” obrigatório, como se tivéssemos que pegar um ônibus até o fim da linha, mesmo que houvesse outros caminhos. (Já imagino a carga de ira contra mim...). A idéia de socialismo foi importante — nos séculos XIX e XX — para tisnar a onipotência do capital.
No entanto, a verdade tem de ser enfrentada: infelizmente, não há hoje no mundo alternativa ao capitalismo. Isso é o óbvio doloroso. Digo e repito: uma “nova esquerda” tem de acabar com a fé e a esperança. Isso dói, eu sei; mas, contar com essas duas antigas virtudes não cabe mais neste mundo de bosta de hoje.
No Brasil, uma “nova esquerda” tem de trabalhar no dia-a-dia e não saber para onde vai. Do contrário, não conseguiremos pensar.
Não adianta “refundar” o PT como se fosse um erro dentro de uma esquerda “certa”. A crise do PT-Lula é o resultado da falência de proposições ideológicas de cem anos. Sem programa teórico e partidário, macro ou micro, os petistas no poder seguiram as receitas do bolchevismo ridículo e paranóico de Dirceu, Gushiken e sua gangue. Deu nisso.
Os que se consideram “progressistas” e, vá lá, de “esquerda”, têm de abandonar a “religiosidade” messiânica que levou Lula ao poder, sem levar em conta sua deficiência cultural, seu oportunismo, seu deslumbramento consigo mesmo, sua incompetência hoje visível. Temos de acabar com categorias ideológicas clássicas e alistar Freud na análise das militâncias. Levar em conta a falibilidade do humano, a mediocridade da “porcada magra” que se escondia debaixo dos bigodudos “defensores do povo” que tomaram os 19 mil cargos no país.
Além de “aventureirismo”, “vacilações”, “obreirismo”, “sectarismo” e outros caracteres ideológicos, temos de utilizar conceitos como narcisismo, paranóia, burrice, nas análises mentais dos “militantes imaginários”. É impossível repensar uma “esquerda” mantendo os velhos conceitos como: democracia burguesa, fins justificam meios, superioridade moral sobre os pequenos burgueses, luta de classe clássica etc...
Na análise do que nos aconteceu, somos vítimas de um desequilíbrio psíquico. Muito mais que “de esquerda” ou “ex-herói guerrilheiro”, Dirceu é um psicopata e Genoino, um narcisista simplório.
Estamos vivendo uma preciosa mudança histórica. Não a desperdicemos.
Os dogmáticos se agarram a pedaços do barco, mas o importante não é punir ou não Lula ou sei lá quem. O fundamental é mudarmos a nós mesmos. Alguma flor vai surgir desse vexame.