Hélio Schwartsman
Chego com atraso à polêmica das charges do profeta Muhammad, mas não resisto a meter o bedelho nesse instigante assunto. Não me surpreenderam nem a publicação dos desenhos em si - a maioria dos quais bastante anódina - nem a violenta reação que se seguiu por parte de alguns grupos muçulmanos. O que me chocou foi constatar o número de vozes supostamente comprometidas com valores republicanos e democráticos que chancelaram alguma forma de censura às imagens, seja advogando pela necessidade de manutenção da paz social, seja pelo "respeito ao sagrado".
É evidente que a liberdade de expressão não é absoluta. Ela está limitada por outras garantias fundamentais do Estado Democrático de Direito, mas não me parece que retratar um profeta ou mesmo Deus com pinceladas de mau gosto ou até em situação francamente ofensiva fira a liberdade religiosa de nenhum indivíduo ou comunidade. E a "ditadura" do politicamente correto, que pretende substituir o velho "index" pela mais eficiente autocensura, ainda não foi capaz de inscrever o direito de não sentir-se insultado entre as normas máximas da democracia.
As liberdades de expressão e de imprensa só fazem sentido se forem asseguradas de modo forte. Afinal, ninguém precisa de salvaguardas para dizer o que todos querem ouvir. Esse dispositivo de proteção ao livre pensamento e à sua difusão só encontra justificativa se for para assegurar o direito de dizer, escrever, encenar, filmar ou expor por qualquer meio já inventado ou ainda por criar idéias que despertem a ira sincera de virtualmente toda a sociedade. Abusos como a divulgação de calúnias ou ofensas a normas que garantem o direito à privacidade, por exemplo, devem ser resolvidos "a posteriori" nas cortes de Justiça e punidos na forma da lei.
Devem-se reconhecer os méritos desse arranjo democrático que procura fazer a fronteira entre o legal e o ilegal coincidir com a linha que separa as idéias de ações. Um nazista empedernido pode defender a "superioridade" da raça ariana e outras bobagens do gênero, mas está legalmente impedido de sair por aí batendo em negros ou exterminando judeus. De modo análogo, o jornal dinamarquês pode estampar charges ofensivas ao islã, da mesma forma que publicações do Oriente Médio são pródigas em produzir caricaturas anti-semitas. E, no mundo civilizado (Brasil excluído), Jean-Luc Godard não experimentou problemas legais para filmar e exibir seu polêmico "Je Vous Salue, Marie", que contestava a virgindade de Maria, tabu para os católicos.
É a melhor síntese que conseguimos até hoje no campo da manutenção da autonomia do indivíduo com a prevenção dos conflitos. Em princípio, cada qual está autorizado a dizer tudo o que pensa, por mais estúpidas, imorais ou ilegais que sejam suas teses. O que não pode é tentar colocar qualquer idéia em prática. (No mundo real, a coisa é um pouco mais complicada, porque a lei também pune delitos como indução ao crime e incitamento ao ódio, mas fiquemos aqui apenas com a norma geral, sem nos preocupar com os detalhes ou zonas cinzentas do sistema).
Mais do que uma frivolidade destinada a permitir que autores e artistas de duvidosa capacidade possam chocar seu público, a liberdade de expressão deve ser interpretada como o resultado de um movimento histórico - o Iluminismo-- que compeliu o Estado a abrir mão de tentar controlar o que pensam os seus súditos. No meu modesto entender, esse foi um dos passos mais fundamentais na história da humanidade. A partir dele idéias passaram a circular livremente em ritmo e volume inauditos, o que produziu conseqüências nada desprezíveis. Não parece exagero afirmar que a "Aufklärung" do século 18 preparou o terreno para a revolução científica dos séculos 19 e 20, alterando de forma insofismável a capacidade do homem de moldar o mundo.
É claro que as graves e por vezes violentas mudanças emblematizadas nas revoluções norte-americana e francesa não se produziram sem vítimas. Uma das mais notáveis foram as Verdades religiosas. O catolicismo, como é óbvio, não morreu com a decapitação de Luís 16 assim como a promulgação da Primeira Emenda à Constituição dos EUA, a que estabelece a liberdade de expressão, não bastou para banir toda forma de censura da história do país. Mas os sistemas políticos resultantes das duas rebeliões cristalizaram, cada um a seu modo, o conceito de separação entre Estado e Igreja. Sob o primado da razão, o espaço público surgiu empurrando a religião para a esfera da vida privada. É bom que tenha sido assim. Sistemas religiosos diferentes puderam em teoria passar a conviver pacificamente ao mesmo tempo em que indivíduos conservaram sua liberdade de orar para o deus que desejassem da forma que quisessem, em inglês, francês, árabe ou aramaico.
É claro que os religiosos muito fervorosos não gostaram. O diabo com as grandes religiões monoteístas é que elas até podem afetar um certo ecumenismo, mas não renunciam à sua pretensão à universalidade. Judaísmo, cristianismo e islamismo afirmam fundamentar-se numa verdade revelada pelo próprio Deus. Se a interpretação das Escrituras ditada pelo Vaticano, por exemplo, é a verdadeira - e o católico sinceramente espera que seja -, então judeus, protestantes e muçulmanos estão fatalmente errados e muito provavelmente estão condenados à danação eterna.
As coisas pareciam mais simples nos tempos do politeísmo, em que os deuses eram menos ciumentos e exclusivistas, e gregos podiam confraternizar com acádios reconhecendo e enaltecendo as semelhanças entre Afrodite e Ishtar. É claro que isso não bastava para impedir conflitos. A religião não é nem nunca foi o único ou principal motivo a engendrar guerras. Mas ela pode ser uma excelente arma, pois presta-se muito bem a desumanizar o adversário infiel.
O banimento da religião do espaço público para o privado foi uma passagem fundamental para o constituição do Estado moderno. Livre das amarras de dogmas, o poder público pôde passar a atuar com bases racionais, o que elevou sobremaneira sua eficácia. Não é preciso muita imaginação para perceber o tamanho do problema que o Brasil viveria se preservativos fossem proibidos por força de lei canônico-civil e a única política pública contra a Aids à disposição das autoridades sanitaristas fosse a promoção da castidade.
Antes que me acusem de estar adotando uma nova religião que apenas substitui o nome de Deus pelo da Razão, explico que existe uma diferença importante. Enquanto cada sistema religioso fala uma língua compreensível apenas para seus adeptos, a razão constitui uma espécie de idioma comum no qual todos os seres humanos são capazes de exprimir-se.
Não estou evidentemente afirmando que todo homem é sempre racional. Se assim fosse, eu não precisaria estar escrevendo esta coluna e não haveria nem religiões, nem artes nem possivelmente humanidade. O que estou dizendo é apenas que, diante da impossibilidade de as religiões monoteístas se aceitarem plenamente como iguais, só o que nos resta é bani-las do universal para o pessoal. Qualquer um ao qual sobre um lampejo de razão é capaz de perceber que essa é a única forma de proporcionar paz e liberdade à maior parcela possível do gênero humano. Cada um precisa aceitar o grande acordo democrático pelo qual ninguém pode impor suas verdades a quem delas não deseja partilhar.
Se a perda da "noção do sagrado" foi o preço que tivemos de pagar pelo fim das conversões forçadas e das fogueiras da Inquisição, então viva a morte do sagrado.
Fonte: Folha Online