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sábado, outubro 15, 2005

Adeus às ilusões

José Arbex Jr*
A condução do deputado federal Ricardo Berzoini, também conhecido como o flagelo dos velhinhos da Previdência, ao cargo de presidente nacional do PT encerra uma etapa da crise iniciada em maio, marcada pela perplexidade e confusão ideológica, especialmente entre a esquerda (petista ou não). Assentada a poeira levantada pelo vendaval político, o PT de Berzoini guarda com o partido criado nas grandes batalhas do ABC a mesma relação que um animal empalhado tem com o ser vivo que lhe deu origem: uma certa semelhança mórbida, um testemunho inanimado e bastante brega de algo que existiu cheio de força e vitalidade. O PT, embora ainda integre milhares de militantes combativos e honestos, foi reduzido a uma versão caricatural de sua história.
O "lulismo", responsável maior pela transmutação do PT, significou a total e completa adaptação do partido ao neoliberalismo como discurso e ideologia e ao aparelho de Estado como base do exercício de poder. O "lulismo" foi paulatinamente construído mediante processo de cooptação de quadros partidários - não importam os meios, preços e conseqüências - e punição da dissidência, na mais pura tradição stalinista. Tal foi, também, um dos sentidos da campanha de filiação em massa: arregimentar centenas de milhares de novos petistas que, atraídos pelo poder, jamais tiveram qualquer compromisso com a luta social e transformá-los em massa de manobra nos processos de disputa política interna. O "lulismo", em resumo, fez do PT um partido fisiológico e adepto de práticas coronelistas, isto é, um agrupamento como outro qualquer.
Exatamente por isso, menos mal que a crise tenha estourado. De fato, demorou. Muito pior seria se ela não tivesse acontecido ou se ainda tardasse a vir à tona. Os efeitos do "lulismo" poderiam ser muito mais devastadores do ponto de vista da esquerda, a exemplo do que ocorre na África do Sul. Nelson Mandela, arquiteto da transformação do país em sólida plataforma do neoliberalismo no continente africano, mantém intacto o seu outrora merecido prestígio. Sua mera presença no cenário político funciona como obstáculo à organização das forças de esquerda, assim como, no Brasil, Lula e séqüito, vulgo Campo Majoritário, funcionaram, até agora, como eficaz baluarte da ordem burguesa.
A crise desnudou o "lulismo" e clareou o panorama. Embora Lula preserve certa popularidade, as forças de esquerda podem se recompor em novas bases, mesmo que isso demande inevitável e doloroso esforço de reflexão e crítica. O fim das ilusões no "lulismo" contribui para arrancar a esquerda da letárgica sonolência provocada pelo contínuo e paralisante abraço das instituições governamentais. Nada melhor para tirar um militante da rua do que oferecer cargo no Estado; nada mais nocivo às organizações sociais do que oferecer a expectativa de que o "nosso governo" vai resolver os problemas, bastando que elas pacientemente esperem.
Claro que, momentaneamente, a esquerda está mais enfraquecida pela crise. Isso não significa, porém, que a medíocre direita - aí incluídos PFL, PSDB e congêneres - tenha assumido nova legitimidade. Sem lideranças de real expressão nacional nem propostas, ela sequer tomou a iniciativa de impedir Lula, por temer o risco de uma explosão de massa. A direita não tem o que oferecer, a não ser mais do mesmo.
A crise abriu aos cidadãos brasileiros a possibilidade de compreender que o jogo eleitoral, tal como se pratica hoje, é corrupto e corruptor. É incapaz de oferecer as soluções esperadas pela nação. A direita já sentiu o perigo potencialmente implicado por tal percepção e avança a proposta de fazer a reforma política, com o objetivo de mudar tudo... para que tudo continue igual - exatamente como no grande romance "O Leopardo", de Lampedusa, sobre o momento da unificação da Itália. Esse quadro sugere, no mínimo, que o próximo presidente brasileiro, seja quem for, assumirá em um contexto de grande fragilidade, pois todo o processo eleitoral está, antecipadamente, enfraquecido e colocado sob suspeita.
E o perigo pressentido pela direita existe, como demonstra a história recente do Equador, da Bolívia e da Argentina. Pela primeira vez no continente, governos eleitos foram derrubados por movimentos de massa frustrados por políticos que prometeram mundos e fundos nos períodos eleitorais. Inversamente, foi o que aconteceu na Venezuela: para defender um governo percebido como realmente seu, a maioria da nação venezuelana se apoiou - e como!- nas instituições da República bolivariana, muito mais avançadas que as tradicionais formas de representação.
Algo importante, de dimensão histórica, transforma as relações entre sociedades e Estados na América Latina. O Brasil faz parte desse quadro. A crise pode, muito bem, passar à história como a parteira de um novo país.
* Jornalista, doutor em história pela USP, é editor especial da revista "Caros Amigos" e autor de "Showrnalismo - a Notícia como Espetáculo" (editora Casa Amarela).