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segunda-feira, outubro 24, 2005

Entrevista: João Moreira Salles

"É uma imensa decepção", diz documentarista da vitória de Lula

Por Sérgio DÁvila:

João Moreira Salles, 42, está decepcionado. Um dos principais documentaristas do país, reconhecido e premiado mundialmente, filmou 180 horas dos meses finais da campanha vitoriosa do candidato Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência, em 2002, que se transformaram no documentário "Entreatos".
Hoje, assim como o público vem fazendo ao assistir de novo a seu filme, Salles repensa aquele momento com olhos críticos. "De um modo geral, o filme virou mais melancólico, se tornou um filme triste. Não era um filme triste, e se tornou", disse ele, em entrevista exclusiva à Folha, que ele concedeu a princípio para falar de um lançamento em sua produtora e da revista que prepara.
Hoje, "Entreatos" se torna quase profético quanto ao principal problema do futuro governo, o despreparo e a falta de um projeto para o Brasil, sufocado por um projeto para a vitória. "Ali, se elegia muito mais um símbolo e muito menos um projeto de país", diz. A seguir, os trechos da entrevista que tratam de política.

Folha - O que você acha desse fenômeno que vem acontecendo com seu "Entreatos", de pessoas querendo revê-lo com outros olhos hoje? Você já reviu sem a cortina da vitória, ou seja, pós-denúncias?

João Moreira Salles - Não. Logo no início das denúncias, como você chama, ainda eram os Correios [em maio, o ex-chefe do Departamento de Contratação e Administração de Material, Maurício Marinho, foi filmado ao aceitar propina de R$ 3.000 de empresários], estava no início da história [da primeira entrevista] do Roberto Jefferson à Folha. Eu fui a um seminário na Unicamp, e o organizador exibiu trechos do filme.
Ali, de fato, percebi que não é que o filme virou outra coisa. O Brasil virou outra coisa, é um pouco diferente. E porque o Brasil virou outra coisa, determinadas seqüências do filme ganham sentido diferente. O filme virou mais melancólico, um filme triste. Não era um filme triste, e se tornou.

Folha - E os telespectadores assistiram quase com olhos de detetive, tentando achar o Delúbio Soares em atitude suspeita?

Salles - É um fenômeno quase compreensível, porque aquilo é um documento que eu julgo importante sobre a vida política brasileira, não tem nada a ver com a qualidade ou a falta de qualidade do filme, simplesmente pelo fato de uma câmera ter existido ali, tão de perto, naqueles últimos 30 dias. Você está ali diante do fato histórico em andamento. É normal que as pessoas queiram voltar a vê-lo para saber o que o Silvinho [Silvio Pereira, ex-secretário-geral do PT] dizia no avião, que queiram saber o que o José Dirceu dizia, mas fica um pouco do jogo dos sete erros, sabe?

Folha - Se quando o Dirceu pergunta "O que esse pessoal está fazendo aqui?" é um traço dele de autoritarismo...

Salles - Exato, vira um pouco isso. Eu não quis que o filme fosse lançado no "Carnaval da Vitória" - e ali havia um impedimento concreto, eu não conseguiria montar um filme em dois, três meses, mas digamos que conseguisse -, era muito claro para mim que não seria bom para o filme que ele fosse lançado imediatamente após a vitória. Houve uma conversa de co-produção entre a VideoFilmes e a Globo, que teria sido muito bom à VideoFilmes, até como ensaio de parceria. Eu poderia ter aceitado, mas o filme seria visto de forma carnavalesca.
Com o sinal trocado, fenômeno idêntico acontece agora: uma exibição hoje é em primeiro lugar oportunista e, em segundo, produz-se uma leitura viciada do filme. Do mesmo modo que não é o "Carnaval da Vitória", como seria visto se exibido naquele momento, não acho que seja antecipatório da crise, que seria visto dessa maneira hoje.
Daí minha decisão de não relançar o filme. Tem também uma questão de lealdade. O filme foi exibido, as pessoas que quiseram assistir assistiram, e poderão assistir de novo quando for relançado em DVD no ano que vem. Então, cumpriu o seu papel. Um relançamento agora é desleal e oportunista, e você tem de ser leal com qualquer pessoa, no caso o Lula e as pessoas que estavam em torno do Lula e que foram filmadas naquele momento.
O filme vai ficar mais interessante com o tempo. A cena famosa do Dirceu, em que ele diz "Quem são vocês e porque vocês estão filmando?", hoje em dia é vista como um claro indício de seu caráter autoritário.
É uma leitura equivocada, ele está sendo apenas uma pessoa responsável. De fato, é uma loucura deixar uma equipe independente no coração de uma campanha a quatro dias das eleições. Ele ali é o princípio de realidade.

Folha - Já na montagem do filme você encontrou indícios do que viria a se confirmar depois?

Salles - Fica muito claro no filme que a vitória do Lula não foi a vitória de um projeto de país, foi a vitória de um homem com um inegável carisma, com uma trajetória extraordinária num país tão desigual como o Brasil. Portanto, você consegue encontrar indícios da falta de projeto, que é um dos problemas desse governo. Ali, se elegia muito mais um símbolo e muito menos um projeto de país.

Folha - Parte da comunidade artística, cultural e de formadores de opinião tem se manifestado decepcionada com o que veio a acontecer. Qual a sua avaliação?

Salles - Como cidadão, como todo o Brasil, acho que é uma imensa decepção. Ninguém poderia supor que a derrocada seria tão grande. É um momento de melancolia. Eu não torcia por isso, pelo contrário. Não é bom para o Brasil, mesmo para quem não gosta do PT. Continuo achando que se modifica um país no âmbito da política, não há outro lugar para isso no regime democrático.
E essa crise produz uma falta de fé na política, aquela velha coisa reacionária de que todo mundo é igual. E não é verdade. Essa descrença produz o cinismo, e esse cinismo produz, enfim, um vale-tudo. E o PT, por erro próprio, encarnava muito essa idéia de "Nós somos puros". Então, quando o próprio santo peca...

Folha - Se Deus está morto...

Salles - Deus morre, a fé morre. E isso é muito ruim, se a crise do governo Collor reafirmou a fé na política e na democracia, essa crise é mais séria, porque é a crise dos puros. Acho que o Lula não é um político como os outros, assim como não acho que o FHC seja como os outros. Fico irritado com essa conversa de que não há diferença entre Maluf e Lula. Claro que existe. Nesse sentido, é um momento muito muito triste para o Brasil. Porque a gente elegeu o símbolo, e o símbolo se desfez. Era o único patrimônio dele [Lula], e ele pode ter perdido.

Folha - Você vê exageros ou generalizações da imprensa?

Salles - A imprensa está cumprindo bem o seu papel, de um modo geral. Mas a generalização ocorre mesmo é na população. Estou cansado de ouvir motorista de táxi, amigos meus repetindo a frase "Todo mundo é igual". E não é! O cara que recebeu a Land Rover [Silvio Pereira] é igual, mas não acho que o [ministro da Fazenda Antonio] Palocci seja.
Existem políticos melhores e piores. Perigosa é essa idéia de dizer que todo mundo é igual. É nesse sentido que o erro do Lula é mais grave do que o do Maluf. Porque do Maluf você espera, do Lula, não.
Assim, essa crise é mais grave do que a do governo Collor. Aquela produziu virtude, essa não sei se produzirá virtude ou só cinismo. Se produzir só cinismo, será uma tragédia. Não quero dizer que Lula seja conivente. O fato é que sem dúvida nenhuma houve ali um equívoco brutal, e o Lula... Ele diz isso no comício da Paulista, que graças a Deus não usei.
Um dos acertos do filme é terminar quando termina, que é o Lula sendo engolido pela realidade. [A câmera] afasta, ele já é o presidente eleito e é engolido pela imprensa. Acabou o sonho, vamos ver se você consegue não ser devorado. Parece que não conseguiu, né? Se terminasse na Paulista, se terminasse no dia seguinte, seria um final edificante, a vitória óbvia, sem nenhuma ambigüidade. Desse jeito, termina de maneira quase inquietante, "Será que ele vai conseguir resistir aos..."

Folha - Você não se arrisca a uma previsão?

Salles - Não, não me arrisco. A minha opinião vale tanto quanto a de qualquer outra pessoa, e menos até, porque não sou especialista. Acho que ele chega à reeleição. Aí é exercício de futurologia.
A economia está crescendo, por incrível que pareça houve um descolamento completo da política com a economia, coisa que nunca aconteceu no Brasil. No ano que vem, se essa coisa for resolvida, com cinco, seis, sete deputados cassados, e se [as denúncias] não chegarem ao Lula, ele tem chance de se reeleger. Mas eu estava dizendo do discurso da Paulista, o Lula diz isso, que é trágico, que todos têm o direito de errar, menos ele. Não é só você que está ali, é você e todos os preconceitos que o Brasil tem contra a sua figura. Portanto, sua responsabilidade é muito maior. E o Lula tem consciência aguda disso.
Disse para 200 mil pessoas: "Professor da universidade que é presidente da República pode errar, eu não posso errar, não tenho esse direito. De mim esperam o erro, de mim esperam o despreparo, eu preciso provar que não sou despreparado..."
A crise de confiança na democracia é mais grave quando alguém como o PT, o Lula e o que ele representa produzem o que produziram do que quando alguém como o Collor produz o que produziu.
É preciso acreditar na política. Portanto, torço muito para que isso não chegue ao Lula e para que de alguma maneira se resolva com uma certa serenidade e que quem merecer ser cassado seja e que o Congresso dê uma demonstração de firmeza.

Fonte: Noblat