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segunda-feira, março 05, 2007

Os ossos do Che Guevara

Continuação
Agora, o casal, indiferente à hostilidade e às tentativas de calar suas verdades incômodas das quais foram vítimas suas obras anteriores, volta numa extensa reportagem da revista Letras Libres, dirigida por Enrique Krauze, intitulada Operación Che. Historia de una mentira de Estado (Operação Che. História de uma mentira de Estado), que irritará muita gente, sobretudo a vasta confraria de devotos de Che que tem peregrinado ao imponente mausoléu erigido pela Revolução Cubana em Santa Clara, onde estão os restos. Estes despojos foram encontrados em julho de 1997, junto com os de outros seis guerrilheiros numa vala comum nas vizinhanças do aeroporto de Vallegrande, na Bolívia, por uma equipe cubana - três engenheiros, um antropólogo forense, um arqueólogo e uma historiadora - chefiada pelo doutor Jorge González, então diretor do Instituto de Medicina Legal de Havana. Os restos foram retirados de Vallegrande e levados a Santa Cruz de la Sierra, onde os legistas cubanos juntaram os ossos e realizaram as necrópsias obrigatórias. Lá, o doutor González anunciou que a 'ossada número 2' era inequivocamente de Che. Faltava-lhe as mãos (depois de assassiná-lo, o Exército boliviano ordenou que suas mãos fossem cortadas para ter provas de sua morte), e a arcada dentária coincidia com a ficha dentária do guerrilheiro. Além disso, na vala comum, foram encontrados o cinturão e a jaqueta com os quais Che foi fotografado depois de morto. A Bolívia permitiu o traslado dos restos mortais de Che, que voltaram para Cuba em 12 de julho de 1997. Por uma feliz coincidência, o corpo chegou à ilha a tempo para os festejos da comemoração do assalto ao Quartel Moncada, de 26 de julho. Três meses depois, numa cerimônia apoteótica, a ossada ilustre foi alojada no mausoléu de Santa Clara ante milhares de cubanos e consagrada com um discurso quilométrico de Fidel Castro. O ano de 1997 - outra coincidência oportuna - havia sido declarado em Cuba como 'O ano de Che' em memória ao 30º aniversário de sua morte. Os jornalistas entrevistaram na Bolívia, em Cuba e na Argentina um grande número de pessoas envolvidas de alguma maneira com a procura dos restos mortais. Examinaram e compararam todos os testemunhos históricos e jornalísticos capazes de lançarem alguma luz sobre o tema. De tudo isso, a dupla concluiu que os restos mortais de Che não são os que repousam no mausoléu de Santa Clara, que esses nunca foram encontrados e que o suposto achado foi uma pura encenação teatral rigorosamente forjada para agradar Fidel que, num momento difícil, quase crítico, para a Revolução Cubana por causa do colapso da União Soviética e o fim dos vultosos subsídios que dela recebia, decidiu montar uma grande mobilização revolucionária em torno da figura mítica do 'guerrilheiro heróico' para desviar a atenção. Não posso resumir aqui todos os argumentos com os quais os jornalistas fundamentam sua denúncia, pois são muito numerosos. Mas como pôde ser possível que a descoberta dos restos mortais de Che não tenha sido questionada por instâncias científicas internacionais apesar do fato de o dr. González e sua equipe nunca tê-los submetidos ao teste de DNA, perguntam os autores. Não é impossível que a hipótese levantada pelos jornalistas seja correta. Fidel precisava que o cadáver de Che reaparecesse oportunamente para dar-lhe uma mão na grande operação para desviar a atenção e a manipular a opinião pública cubana, golpeada duramente pela crise econômica e pela incerteza. Assim, toda a máquina do Estado se pôs em marcha para encontrar o corpo, ou inventar um, se não aparecesse o verdadeiro. Por isso, a vala comum de Vallegrande foi aberta à noite, fora do horário permitido para a escavação e, por isso, a 'ossada número 2' nunca foi submetida a um exame de DNA. O restante, acrescentaria eu, foi feito pelo mito por si mesmo. Che Guevara já atingiu essa categoria, uma posição que põe seu ocupante acima da leis da História e da realidade comum. Não importa que os historiadores sérios mostrem, em obras exaustivas, que o Che Guevara real, de carne e osso, estava muito longe do exemplo de virtudes milicianas e éticas. Que foi valente, isso sim, mas também sanguinário, capaz de fuzilar dezenas de pessoas e, do ponto de vista militar, seus fracassos e erros foram bem mais numerosos que seus êxitos. O mito exigia que os restos mortais de Che aparecessem. Por isso, quando aconteceu, todos que os esperavam acreditaram sem pensar duas vezes. É assim que, às vezes, é escrita a História. E é assim que a realidade cinzenta é enriquecida pelas belas ficções.

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