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sábado, abril 22, 2006

DEBATE ABERTO

O partido no governo e o governo no partido: uma relação muito complexa

Continuação
Considerando o enfraquecimento do poder dos sindicatos e dos trabalhadores em todo o mundo devido ao desemprego crescente e, portanto, da fórmula tradicional dos partidos de esquerda e considerando ainda a emergência de novos atores políticos a partir dos anos 60 (ONGs e movimentos sociais ligados a meio ambiente, gênero, etnia, etc.), qual é o espaço de um partido de esquerda na cena política atual? E no espaço institucional? Considere-se ainda que essas mudanças encontram um sistema político que não se modernizou. Pelo contrário, está fortemente baseado no patrimonialismo, entendido como a privatização da esfera pública e o exercício da política do favor. Qual a possibilidade desse partido, aceitando a luta pelo poder pela via institucional, evitar essas práticas?
Considerando que o capital financeiro internacional, dominante na fase capitalista em que vivemos, não pode submeter-se ao ritmo ou incertezas das instituições democráticas nacionais e engendra novas instituições que decidem mais do que o próprio Congresso ou Tribunais Superiores (volume dos superávits, taxa de juros, decisões sobre o câmbio, taxa de risco...), qual é o espaço que tem um governo na aplicação de um programa para o qual foi eleito, se este contraria interesses que caracterizam o novo imperialismo?
Considere-se ainda que o poder do Executivo está subordinado a tradicionais relações de troca e que as eleições para os parlamentos são grandemente dependente dessas trocas, sob a forma de emendas e empregos ou cargos, além do financiamento de campanhas milionárias. Qual a autonomia que tem um governo de executar políticas públicas impessoais baseadas em prioridades socioambientais, índices, indicadores, metas, expertise, colaboração federativa, tudo isso definido democraticamente?
Não pretendemos responder a todas essas perguntas neste texto, mas contribuir com aqueles que, no PT ou nos partidos de esquerda em geral, estão buscando alternativas para retomar um projeto de esquerda democrática no Brasil tendo em vista a crise política que nos envolve desde início de 2005. Embora, como lembrou Chauí, trate-se de uma crise da “politiquinha”, que não inclui temas estruturais para a nação, para o PT e seu futuro, ela é essencial. Um rearranjo das forças de esquerda está em curso no país, inclusive dentro do próprio PT, buscando ocupar o vazio deixado pelas expectativas não correspondidas e pelos ataques das forças conservadoras. Não são poucos os que ainda sustentam o projeto original do PT (submetido à evolução decorrente da mudança de conjuntura) em numerosos rincões deste país, como revelou o PED (processo de eleição direta). Os votos mostraram que pelo menos 100.000 militantes divergem dos rumos tomado pelo partido, a partir de 1994, para ganhar eleições sem levar em conta o preço. A invisibilidade desse exército pode confundir analistas, alguns até comumente argutos, que apregoam a morte do PT. Mas também não é evidente, diante de projetos estrategicamente distintos, qual vai prevalecer no PT: a máquina cujo foco é ganhar eleições no contexto da cultura dominante ou o partido de massas democrático com foco na democratização da sociedade brasileira. O massacre que os conservadores (e evidentemente as forças da globalização que não querem a expansão desse movimento institucional libertário na América Latina) estão impondo, por meio da mídia, ao governo Lula e também aos movimentos sociais precisa de resposta. Mas isso não deve calar os debates sobre nossas questões mal resolvidas como a Reforma Política, a democracia e o financiamento partidário, a política econômica, as relações entre partido e movimentos sociais e as relações entre partido e governo. Este último tema é o que motiva este texto.Vamos defender a idéia de que o espaço institucional condiciona fortemente as possibilidades e a liberdade de realizar mudanças profundas como preconizam os programas de governo, devido a um grande e diverso número de constrangimentos. Essas limitações se agravam quando se exige pressa. As mudanças no Executivo são lentas, e se forem profundas (estamos aqui sempre no interior do marco institucional), dificilmente podem ser finalizadas no curto tempo de uma gestão de 4 anos. Estamos vivendo algo como a “hora da verdade” e é importante conhecer essas limitações. Elas fazem parte do amadurecimento de todos. Até mesmo daqueles que se entregaram ao pragmatismo típico da política brasileira e entenderam que as conquistas poderiam ser compradas. Defenderemos, entretanto, que apesar disso, os governos têm condições de implementar mudanças importantes na atual conjuntura brasileira, especialmente na ampliação da participação democrática e que a sempre mencionada, mistificada e quase mágica “vontade política” não é suficiente mas é fundamental como revelam as experiências do Ministério das Cidades. A última observação dessa introdução informa que não vamos nos deter muito na conjuntura eleitoral. É nossa opinião que apesar da importância do momento as mudanças que precisam ser feitas (e que o PT começou a fazer na primeira metade de sua existência) não são rápidas e embora não prescindam da via eleitoral não se farão apenas por meio dela.Para tratar das limitações de realizar as utopias partidárias no governo vamos começar pelas mais gerais.

AS FORÇAS DA GLOBALIZAÇÃO E AS FORÇAS DO PATRIMONIALISMO

As forças globais já definiram um destino para o Brasil na atual conjuntura: produtor mundial de commodities como celulose, grãos, minério, álcool, entre outros. O modelo guarda alguma lembrança de tempos passados mas seu impacto talvez nunca tenha sido tão avassalador. O avanço da cana de açúcar, da soja, do eucalipto (“inferno verde”), redirecionaram as migrações e o processo de urbanização. A infra-estrutura relacionada a exportação desses produtos está alavancando a construção ou reforma de ferrovias, algumas que estavam em ruínas há décadas. Do sul de Minas, até o norte do Rio Grande do Sul; do centro oeste (incluindo o sudoeste do Paraná) até Rondônia e sul do Piauí; no interior do Estado de São Paulo, as mudanças são espetaculares. Isso não significa que a pobreza e a informalidade apresentam grandes mudanças especialmente se considerarmos o contingente populacional que se amontoa nas metrópoles (30% da população), onde o desemprego chega até a 20%, como é o caso de Salvador.
O Consenso de Washington, hoje renegado pelo próprio criador e criticado pelo prêmio Nobel Stiglitz, continua a fazer suas baixas por todo o mundo: privatização, desregulamentação, primado do mercado, políticas sociais compensatórias, desprestígio do papel do Estado e das políticas públicas, precarização do trabalho, etc. No México e na África do Sul (após 10 anos de governos democráticos), a privatização da água avança, por incrível que possa parecer, diante das precárias condições de saneamento de grande parte das populações desses países. As grandes corporações mundiais têm receita maior do que o PIB de mais de uma centena de países. A melhor imagem que podemos usar para mencionar a globalização é de uma tsunami. Uma grande e irresistível tsunami. Barrá-la é impossível no espaço de uma nação o que não significa que não haja ações importantes a serem postas em prática. Como foi mencionado acima, as forças globais têm dificuldade de convivência com as instituições democráticas de cada país. Forjaram a ferro e a fogo, com a ajuda de uma certa mídia bem paga, instituições que mandam mais do que os congressos nacionais. Senão vejamos: os Bancos Centrais interferem profundamente na vida dos países e não prestam contas a ninguém. No Brasil, seus diretores são ilustres desconhecidos e suas reuniões, inacessíveis, geram atas burocráticas e indecifráveis até para muitos economistas. Ninguém ali foi eleito. O nome indicado para a presidência do BC passa, no máximo por uma “sabatina” no Senado. Os diretores são anônimos até para os leitores de jornais que são ínfima minoria em nosso país.
O “risco país” é um indicador que tem mais prestígio do que a distribuição de renda. Paira como uma espada sobre a cabeça do país. Como é definido? Quem define? Quais os critérios para sua definição? Jovens executivos, representantes de empresas privadas internacionais (agências de rating) vivem dando entrevistas à imprensa (como já se disse, muito prestativa) criticando os “gastos públicos” (que é a bola da vez), o salário mínimo, a falta de reformas conservadoras, etc. Recentemente o recém empossado Ministro Guido Mantega disse que não seria necessária uma nova reforma na previdência e que o problema do déficit poderia ser resolvido com gestão eficaz. Pois bem, ganhou uma crítica sob a forma de manchete de jornal inspirada na entrevista de um jovem representante de uma dessas agências. Todos os dias as críticas estão sendo veiculadas insistentemente, constituindo um processo de lavagem cerebral (que em grande parte dos casos é reforçada por argumentos mais convincentes, como alguma ajuda de custo).
Enquanto os governos de inspiração neoliberal, especialmente a partir de Collor, desmontaram muitas estruturas e até o conhecimento acumulado em alguns setores do aparelho de Estado; outros setores do mesmo aparelho se fortaleceram e constituíram, ao longo do tempo, equipes fortemente preparadas e organizadas, com salários e condições de trabalho excepcionais. Não estamos nos referindo às estatais que, especialmente a partir do Regime Militar, constituíram uma aristocracia que guarda imensa distância em relação à administração direta (salários, equipamentos, espaço, mobiliário, recursos, poder, etc). Queremos destacar que entre os Ministérios também há aqueles que são de primeira classe e aqueles que são menos importantes. No Ministério da Fazenda há um conjunto de profissionais que podem não conhecer profundamente a realidade social e territorial brasileira (afinal, nem nas academias ela é suficientemente conhecida) mas foram preparados e organizados para uma missão e a cumprem com muito profissionalismo e absoluta objetividade. Seu papel ideológico é claro e mal disfarçam as orientações que podem ser encontradas no texto resultante do Consenso de Washington. Exercem seu poder sobre os demais ministérios com o máximo de rigor e sem prestar quaisquer contas, a não ser para seu chefe, que nem sempre é o Ministro. Mandam mais que Ministros e muitas vezes desafiam o próprio presidente. Desafiam o pacto federativo e ignoram a Constituição Brasileira. Não se pretende dar a idéia de que a vontade política expressa pela sociedade não conta para mudar essas estruturas e que qualquer que seja o Ministro ele será refém do sistema. Pretende-se apenas lembrar que a máquina não é neutra, com seus funcionários, procedimentos, cultura, normas, etc. E é com ela que qualquer Ministro de plantão e seus assessores irão trabalhar. Vamos contar um caso, dentre os muitos que podem ilustrar até que ponto essa ideologia está arraigada em lideranças e até setores inteiros do Estado Brasileiro, a partir dos anos 90, por influência da poderosa máquina colocada em marcha sob a liderança intelectual dos think thanks americanos, pagos a peso de ouro, e das agências como Banco Mundial, BID, OCDE (que financia mais de 600 pesquisadores em todo o mundo), FMI etc. No início de 2003, percebemos que os únicos recursos significativos que o Ministério das Cidades tinha para investir no saneamento ambiental estavam no FGTS. Devido ao contingenciamento orçamentário e ao pagamento de juros da dívida, não havia recursos do OGU para investimento no saneamento, senão na Funasa (Fundação Nacional de Saneamento do Ministério da Saúde), cujos recursos são garantidos pela Constituição Brasileira. (Em meados de 2005, o deputado federal Delfim Neto e assessores da Fazenda começaram uma campanha, felizmente mal sucedida, visando liberar os percentuais orçamentários da Saúde e da Educação fixados pela Constituição Federal). No entanto, os recursos do FGTS, embora “baratos” e embora não oriundos do OGU (Orçamento Geral da União), não podiam ser emprestados aos municípios e estados. Nem mesmo àqueles que não tinham a barreira da responsabilidade fiscal ou qualquer outra dívida com o Tesouro Nacional. Eles esbarravam na capacidade de endividamento do Estado brasileiro (no conjunto), a qual impactava o superávit primário. Por esse motivo, e seguindo essa orientação, o governo FHC, em especial em sua segunda gestão, apresentou um investimento diminuto na área do saneamento: ficou quase que totalmente restrito aos recursos da Funasa. Após as primeiras lutas internas ao governo e a pressão do presidente Lula, a Secretaria do Tesouro fez um acordo com o FMI para autorizar o gasto de R$ 2,9 bilhões excepcionalizando esses recursos do cálculo do superávit primário. Antes de continuar, vamos fazer um parênteses cobrando do leitor um instante de reflexão: porque os recursos aplicados no saneamento são contabilizado como gasto nas contas públicas restringindo a capacidade de investimento do país? E o que é mais grave ainda: porque os investimentos da Petrobrás em torres para extração de petróleo são contabilizados como gastos e não como investimento? Idem para os investimentos em energia, transporte, etc? Quem define tal metodologia que engessa o país? Bem vamos deixar essas perguntas por aqui já que buscar suas respostas nos afastaria do caso que está sendo relatado. Registre-se apenas o quanto profundo é o grau de dependência externa já que atinge a forma de operar a contabilidade do Estado.
Para emprestar os recursos de FGTS às empresas de saneamento ou aos governos municipais e estaduais era preciso aprovar então uma resolução no Conselho Monetário Nacional. Qual foi nossa surpresa ao ler a resolução n. 3.153/2003: traduzindo claramente ela proibia o investimento em áreas que não apresentassem capacidade de retorno sob a forma de tarifas para cobertura dos encargos financeiros e da amortização do financiamento. Em outras palavras esse empréstimo não podia ser aplicado em favelas ou áreas de baixa renda. A lógica das cabeças neoliberais deram o tom: nada de subsídios. Esses recurso oneroso se destina ao mercado, ou seja apenas a quem pode pagar. Mesmo que o tomador (empresa pública, empresa privada ou governo) tivesse condições próprias de dar subsídios ele estava proibido pela resolução do CMN: uma resolução que ignora o pacto federativo, proíbe o subsídio e usa da autoridade federal para garantir a relação mercadológica de um serviço público essencial como a água e o esgoto. Na Secretaria do Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades o time da Secretaria do Tesouro Nacional encontrou outro time de profissionais competentes, e também obcecados, mas com propósitos muito distintos. Não é o momento de rechear esse relato com episódios reveladores sobre como o time do “saneamento enquanto política pública” enfrentou o time do “ajuste fiscal a qualquer preço”. Após um novo round uma nova excepcionalização de limite de contratação foi aprovada no final de 2005. Nessa oportunidade, agora com a ajuda da ministra Dilma Roussef no embate com a Fazenda. No final dos quatro anos de governo Lula, terão sido contratados R$ 5,7 bilhões ou R$ 7 bilhões. O resultado depende de um último round na luta contra as limitações dadas pelo draconiano ajuste fiscal. Qualquer que seja o número teremos um recorde de contratações na área do saneamento se comparado aos 20 anos anteriores ou desde o início do declínio do BNH em 1982. Esse é um exemplo interessante de como é possível ampliar os limites inicialmente dados no governo, com muita luta e competência (que por sinal os tucanos não tiveram). A ignorância da mídia, e até mesmo de setores da máquina federal, sobre o longo tempo que decorre entre assinar um contrato de investimento na área do saneamento e o início da obra gerou muitas críticas injustas ao governo federal e ao Ministério das Cidades. Após a assinatura de um contrato, o tomador do empréstimo ou de recursos a fundo perdido precisa detalhar o projeto, licitar a obra, iniciar a obra para então solicitar os recursos. Vários jornais nacionais publicaram mais de uma manchete com denúncias sobre os recursos que não estavam sendo gastos mas ao invés de cobrarem agilidade dos tomadores, cobravam a ação do governo federal. O desconhecimento generalizado sobre a realização orçamentária permite à Secretaria do Tesouro Nacional comandar o ritmo dos empenhos e liberações de tal modo que se criou uma tradição de remeter uma grande parte dos recursos orçamentários para o ano seguinte sob nome de “restos a pagar”. Eles não são restos e nem a pagar. Mas até mesmo nomes como esse tem um papel ideológico. Tudo é feito para o Estado não gastar e cumprir as metas estabelecidas. Dessa forma, em quatro anos são realizados os orçamentos de três anos. O Siafi, criado para dar transparência sobre os gastos do governo é mais um elemento que confunde ao invés de esclarecer. Quantas vezes o Ministério das Cidades foi cobrado pela imprensa por não gastar os recursos do ano? Acontece que até junho, em geral, estávamos pagando os recursos do ano anterior que foram liberados na última semana do ano, o que nos obrigava ao plantão anual. (Neste ano de 2006, com a escandalosa retenção do orçamento sem aprovação pelo Congresso, o aperto será maior, pois a partir de junho, por lei eleitoral, o governo não poderá mais contratar item de despesa).
Como planejar diante dessa situação? Planejamento exige previsão de gastos no tempo, o que se torna muito difícil quando o ritmo da realização orçamentária não é endógeno. A Secretaria do Tesouro Nacional define o ritmo (ou a retenção) de recursos sob a alegação do cumprimento do superávit, o que retira de cada unidade da administração a segurança de cumprimento dos compromissos assumidos. Mas o que poderíamos chamar de autoritarismo da Fazenda, do Tesouro Nacional e do Banco Central, entre outros organismos, não é a única limitação forte que um programa partidário que busca mudanças encontra para ser implementado no governo. A outra vertente que impede a implementação de planos e políticas públicas sociais democráticas é a velha relação da troca e do favor que domina o universo da política brasileira. Vamos recorrer novamente a um exemplo para dar concretude a essa idéia tão conhecida e manipulada em discursos de todas as filiações ideológicas. Em abstrato somos todos republicanos, democráticos e progressistas. Na prática... Ao sair do Congresso Nacional, a LOA (Lei Orçamentária Anual) de 2005 revelava que 1/3 dos investimentos do Ministério das Cidades deveriam ser aplicados em asfaltamento de vias. Essa foi a decisão final do Congresso. Isso implicaria em pulverizar mais de R$ 1 bilhão em pequenos trechos de ruas asfaltadas em alguns dos mais de 5.600 municípios brasileiros por meio das emendas parlamentares. Nada, nenhum critério havia sido usado até então para impedir que essas obras fossem realizadas de forma inadequada (em loteamentos desocupados – o que é uma forma de valorizar a propriedade -, sem rede de água e esgoto, sem rede de drenagem, sem lugar para calçadas de pedestres, por exemplo). A equipe do Ministério tentou em vão evitar a prioridade ao asfalto ou tentou ao menos subordiná-lo a alguma diretriz urbanística municipal. Um Caderno de Apoio ao Parlamentar foi ingenuamente impresso e distribuído para auxiliar a definição mais racional de emendas e nele foram registradas as prioridades da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano definidas na 1ª. Conferência Nacional das Cidades. Essa primeira Conferência contou com a participação, em seu processo, de 3.400 municípios, 26 Estados da Federação e 2.510 delegados eleitos para a formulação das prioridades da política urbana. O esforço foi em vão. Definitivamente o sistema de emendas parlamentares não segue a lógica das políticas públicas impessoais, técnicas e democráticas.
Evidentemente, um parlamentar eleito democraticamente tem toda a legitimidade de participar da elaboração da peça orçamentária e tem vivência sobre a necessidade de “suas bases”. O que se passa, entretanto, é uma verdadeira negociação sobre o uso pessoal de uma parte do orçamento em troca do apoio ao governo. E como cada um tem interesses sobre a peça orçamentária, sua definição é uma obra muito complexa e dependente de muitas variáveis. Até mesmo a verba (diminuta após cortes e contingenciamentos) que depende da discricionaridade de cada Ministério poderá tomar o rumo do clientelismo e da troca, de acordo com o Ministro de plantão, anulando qualquer possibilidade de execução de um plano ou política pública previamente definidos. Uma pesquisa feita no Ministério das Cidades mostrou que uma parte dos investimentos destinados às emendas resultam em ações e obras úteis embora pulverizadas, mas outra passa por muitos desacertos e resultam em obras inacabadas, inadequadas, incompletas, inúteis ou ineficazes. A corrupção explica uma pequena parte desses desacertos. A maior parte decorre dessa lógica irracional de definir no orçamento da União uma pequena obra que será feita em um determinado local de um dos 5.560 municípios brasileiros, com a intermediação de um deputado, vários Ministérios, uma prefeitura ou um governo estadual, a Caixa Econômica Federal (em alguns casos), uma empreiteira (em alguns casos) e tudo isso fiscalizado por várias entidades. O exemplo dado foi de 2005 mas poderia ser de qualquer dos anos do governo FHC para ficarmos na gestão anterior a Lula apenas. Como se pode constatar os recursos são parcos e sua aplicação tem constrangimentos para seguir a racionalidade da eficácia e do interesse público. A lógica da política do favor é contrária á das políticas públicas e de Estado. Não há espaço para o interesse público ou para o interesse social no reino do patrimonialismo.
Não há dúvidas de que o Ministério das Cidades abriu espaço ao pautar a Política Urbana e ampliar o seu alcance por todo o Brasil com as Conferências das Cidades alimentando um debate nacional que apesar da importância estava esquecido desde o Regime Militar. A nova matriz da Política Nacional de Habitação constitui uma mudança de importância histórica Mas formular uma política e implementá-la sem que ninguém, individualmente ou em grupo, tenha vantagem com isso não é a lógica das instituições tal como estão organizadas e suas culturas políticas no sistema brasileiro. Não é por outro motivo que houve troca de Ministros no Ministério das Cidades. A troca foi exigida contra apoio no Congresso do então presidente da Câmara Severino Cavalcante.

Mais limitações dadas pelo cotidiano

O primeiro exemplo que usamos mostrou uma disputa entre projetos políticos. Essa disputa entre projetos políticos claros e antagônicos tem sido a marca de boa parte do governo Lula, mas não de todo o governo. Nem toda a máquina pública conta com funcionários que seguem um projeto e mesmo assim parte deles poderão oferecer resistências a mudanças, não pelo viés ideológico, mas como resistência à manipulação ou quando não, pela própria inércia. Motivos não faltam. Uma parte dos funcionários estão desiludidos e frustrados com a falta de continuidade nas políticas e a manipulação que é feita, a cada gestão presidencial, pelo partido ou grupo que “ganha” cada Ministério. Outros já desistiram e buscam exclusivamente cuidar da própria vida e levar vantagens pessoais. O investimento na capacitação e no entusiasmo dos funcionários para um projeto que valoriza e profissionaliza o trabalho exige muito tempo. Uma gestão de 4 anos é pouco tempo para iniciar um processo e colher resultados. Isso é possível fazer mas não é simples. A esquerda conhece muito pouco o que chamamos genericamente de governo e a mídia menos ainda: aparentemente tudo dependeria de competência e vontade política. Isso é verdade apenas em parte. Contratos passam de um governo para outro. Procedimentos burocráticos sedimentados também. Um imenso conjunto de condicionantes: normas, cadastros (que podem estar incompletos ou incompatíveis entre si), disputas intestinas entre organismos, ações corporativas são dificuldades com as quais todo governante lida. A inexperiência diante desse universo é fatal. Outra grande dificuldade é a fragmentação e até a disputa dos organismos de um mesmo governo.
Uma gestão governamental não se assemelha a construir um edifício sobre um terreno vazio ou desenhar em um papel em branco. Isso é óbvio, mas precisa ser lembrado justamente para a compreensão das limitações.
O PT sempre reivindicou políticas sociais perenes, um funcionalismo público profissionalizado (o que implica em diminuição dos cargos em confiança), o fortalecimento da administração direta, transparência e participação na administração pública, todas as condições enfim que caracterizam um estado democrático independente da tradição oligárquica e patrimonialista. Após a experiência no governo federal, o partido talvez pudesse rever a defesa que fez de um Estado entendido como um ente abstrato e fechado. No início dos anos 90, quando os interesses internacionais conduziram uma campanha contra o Estado (também de modo abstrato e genérico) caracterizando-o como grande demais, caro, ineficaz, pesado e lento e preconizando a necessidade de sua reforma, a CUT, parte dos professores universitários, e os partidos de esquerda fizeram a contra-ofensiva opondo-se à reforma que defendia as privatizações. O debate no entanto foi extremamente pobre e nossos adversários levaram a melhor não apenas porque fizeram uma forte campanha de mídia utilizando a imagem de um elefante e utilizando comunicadores de massa (Ratinho, Hebe Camargo e Ana Maria Braga, na época) mas porque a esquerda não se deu conta de que para o povo, que enfrentava as filas nos postos do INSS ou nos hospitais, ou enfrentava a burocracia no momento de abrir um pequeno negócio ou aprovar uma planta na prefeitura, o Estado era sim grande demais, caro, pesado, lento e ineficaz. A maior parte do Estado brasileiro é anti-popular. A bandeira da reforma deveria ser nossa e não deles. Infelizmente o debate ficou no campo ideológico longe da experiência cotidiana de todos. Há parcelas desse Estado que precisam, de fato, ser enxugadas, assim como há parcelas que precisam ser, em muito, ampliadas equipadas, capacitadas. Dentre os muitos aspectos para os quais poderíamos chamar atenção, queremos lembrar a incrível quantidade de organismos voltados à fiscalização do governo federal (para ficarmos restritos a essa esfera): auditorias internas, Tribunais de Contas, Controladoria Geral da União, Congresso Nacional com todos seus instrumentos, além de outros menos importantes. Uma parte dos funcionários dos governos e das estatais dedicam-se única e exclusivamente a atender auditores, elaborar relatórios, responder questionamentos etc. Esses procedimentos prejudicam o andamento dos trabalhos mas aparentemente, não tem sido eficazes em combater a corrupção. Seria o caso de verificar isso ao longo de um período histórico já que Polícia Federal, Ministério Público e Controladoria da União atuando de forma independente são acontecimentos recentes.
Esses fatos lembrados aqui de forma pouco sistematizada pretendem mostrar que conhecemos pouco a realidade desigual e contraditória do Estado brasileiro hoje. Recentemente (abril de 2006) conversando com um motorista do Ministério Público Federal tive a notícia de que seu salário inicial (após aprovação em concurso) é de R$ 3.500,00. Compare-se essa remuneração com aquelas recebidas na área da Educação ou da Saúde ou então com os salários nas estatais. O conhecimento acadêmico ou teórico precisa ser retomado, mas ele não basta. Isso me faz lembrar muitos debates sobre a Teoria do Estado que presenciei, especialmente entre juristas, que passavam muito longe da realidade vivida. A expressão do brilhante Sergio Buarque de Hollanda é lembrança atualizada e recorrente:
“Ainda quando se punham a legislar ou a cuidar de organização e coisas práticas, nossos homens de idéias eram, em geral, puros homens de palavras e livros; não saiam de si mesmos, de seus sonhos e imaginações. Tudo assim conspirava para a fabricação de uma realidade artificiosa e livresca, onde nossa vida verdadeira morria asfixiada. (...) Como Plótino que tinha vergonha do próprio corpo, acabaríamos por esquecer os fatos prosaicos que fazem a verdadeira trama da existência diária, para nos dedicarmos a motivos mais nobilitantes: à palavra escrita, à retórica, à gramática, ao Direito formal.”
S.B. de Hollanda / Raízes do Brasil, página 123

Apesar de tudo é possível avançar

Após discorrer sobre todas essas dificuldades para realizar um governo progressista (nem revolucionário e nem de esquerda) vamos tentar mostrar que no entanto podemos registrar muitos avanços importantes em governos eleitos no interior desses marcos institucionais.
Quando Lula se candidatou ao governo de São Paulo, em 1982, tínhamos no PT de São Paulo um grupo de profissionais que se dedicaram a elaborar o programa de governo. O grupo, coordenado pela arquiteta Mayumi Souza Lima, era dividido em “Setoriais” (energia, meio ambiente, saúde, educação, finanças, etc) e cada Setorial tinha um coordenador. Jamais vou me esquecer a forte impressão que aqueles debates me deixaram. Enquanto que a universidade apresentava um forte declínio da capacidade instigante e criadora (como resultado da ação da ditadura sobre ela) , nos Setoriais do PT o que se verificava era o desenvolvimento de conhecimento novo, profundamente engajado na realidade social e política e atualizado tecnicamente. Na verdade, o partido serviu como aglutinador de grupos e indivíduos que vinham de práticas muito diversificadas nas periferias urbanas, nas comunidades eclesiais de base, no funcionalismo público, nas universidades. Acho difícil que o partido tenha a memória de todos os programas de governo escritos e debates que os antecederam, mas certamente constituiriam importante fonte de pesquisa. Com o passar do tempo os setoriais foram se estruturando em nível nacional e a SNAI assumiu a tarefa de disseminar parte das propostas consensuadas entre seus participantes.
Os primeiros governos municipais do PT, ainda na década de 1980, sob regime de exceção, mostraram que tinham propostas e vieram para mudar. Poderíamos fazer uma relação imensa das inovações em diversas áreas que deixaram fortes marcas em várias cidades: educação, cultura, saúde, abastecimento, habitação, saneamento, etc. Nem todo o preconceito existente contra o PT conseguiu abafar a qualidade de seus governos. Após várias administrações petistas o perfil de Santo André (submetido à desindustrialização e portanto forte desemprego do ABC) mudou, idem Diadema, Belo Horizonte, Belém, entre outras. Cidades muito pobres, como Icapuí no Ceará e Recife, em Pernambuco apresentaram forte mudança de alguns indicadores, apenas para citar algumas. O modo petista de governar começou a ganhar reconhecimento. A construção dessa marca foi sem dúvida um grande feito que se baseou em fatos e não apenas em marketing. Conseguimos mostrar competência, eficácia, honestidade, sensibilidade para com os direitos humanos e sociais.
Mas foi no campo da participação direta que o avanço foi mais considerável e Porto Alegre foi a experiência mais bem sucedida do Orçamento Participativo. O OP significou a abertura de uma caixa preta, coisa que antes parecia totalmente impossível. Disseminar conhecimento sobre receitas e despesas, democratizar a tomada de decisões que antes ficavam a mercê dos lobbies de empreiteiras e proprietários imobiliários foi, sem dúvida uma grande e corajosa mudança. Há evidências empíricas de que os movimentos sociais avançam em governos do PT. Os testemunhos dos movimentos em São Paulo são claros. (Essa constatação deveria merecer maior reflexão).
No governo federal, apesar do conservadorismo da política econômica, as conferências nacionais, a criação de conselhos e o fortalecimento dos conselhos existentes é uma conquista que ainda está para merecer o reconhecimento. Até mesmo o MST reconhece, em meio a fortes críticas que faz à política econômica e agrícola do governo, que nunca sua organização avançou tanto.
Por outro lado é importante constatar que, assim como o PT não é o antro de corrupção que quer fazer crer a campanha em curso (especialmente considerando o currículo de muitos dos que atacam) ele também não é o único partido nem a única força organizada que apresenta bons exemplos na administração pública. A luta por uma esfera público participativa vai muito além do PT ou dos partidos. Estamos todos mergulhados no ambiente de determinações seja da globalização seja das forças históricas do atraso. Essas influências não eximem nem mesmo os partidos e os movimentos sociais. Apesar da história de sucessos e de conquistas inovadoras foi com grande tristeza que assistimos uma parte do PT ser dominada pela velha forma de fazer política quando pretendíamos (e muitos de nós, continuamos pretendendo) transformá-la. A partir do início dos anos 90 os debates sobre os programas de governo perderam muito da importância. Com a política de alianças que ignoram os programas eles perderam até mesmo o sentido (“aliados” que nada tem a ver com a democratização do Estado e o combate à desigualdade social são guindados à cabeça de instituições ou entidades nacionais fundamentais para liderar o desenvolvimento do país). O conhecimento e as propostas amadurecidas durante longos processos sociais perderam a importância diante do pragmatismo ditado pelas alianças pouco justificadas. Embora a política econômica do governo Lula tenha apresentado mudanças em relação à do governo FHC, como bem demonstrou Amir Khair num dos debates promovidos pelo Fórum de Reflexão Política, sua tônica foi por demais conservadora. E o que é pior, a militância do PT nunca mereceu qualquer explicação sobre esse fato. A espinha dorsal da unidade partidária foi quebrada com a total falta de justificativa ou informação sobre uma prática que contrariava o discurso (a própria essência do PT!) de tantos anos e foi imposto um silencio dos mortos sobre esse assunto, já que qualquer “marola” poderia incomodar o mercado e atrapalhar a credibilidade e a estabilidade que o governo estava duramente tentando conseguir. O partido foi utilizado como linha auxiliar do governo para respaldar, sem discutir, essa política. Ele foi mediocrizado e subordinado. Valeu a pena esse sufocamento imposto ao conjunto da militância e da sociedade que esperava tanto por mudanças? O resultado (político, econômico e social) compensou? Quais foram os interesses contemplados? Haveria alternativas a esse caminho adotado? Em relação à política de alianças poderíamos fazer uma reflexão semelhante: o papel de alguns membros da direção do partido foi de financiar alianças discutíveis sem qualquer justificativa e sem que a militância tomasse o menor conhecimento. Sem perder de vista a necessidade de responder aos ataques conservadores que tentam acabar não apenas com o PT mas com toda a esquerda e criminalizar os movimentos sociais, não podemos deixar de fazer esse debate sob pena de não erradicar esses erros.
Como lembramos aqui o cenário onde atuamos está pleno de contradições e fissuras que fornecem um bom material para o trabalho de mudança. É preciso conhecê-las para saber explorá-las. Ao contrário do que muitos pensam a crise política não é o fim do PT mas ao contrário uma boa oportunidade para o confronto com o projeto da máquina burocrática que já dominava o partido há muitos anos. O PT é muito jovem e tem tempo para se rever e se preparar para as mudanças mais profundas que a sociedade brasileira exige. Retomar a democracia no interior do partido ao mesmo tempo retomar a luta pela democratização do Estado e da sociedade brasileira é uma tarefa fundamental. Ela exige o respeito à diversidade que marcou o PT como um partido inovador. Implica em reconhecer a importância da questão racial, da questão de gênero, da questão ambiental, da questão urbana, dos direitos humanos, do insubstituível lugar dos movimentos sociais e da luta secular pela terra no campo e na cidade. Um lugar especial deve ser reconquistado para a cultura e para as artes (dos oprimidos) sem o que os jovens não reconhecerão o partido como um espaço de vivência. Trata-se do partido se colocar a serviço disso tudo (e não servir-se disso tudo) definindo claramente de que lado está nesta sociedade profundamente desigual. Para tanto a convocação de um Congresso do PT a partir do próximo encontro Nacional seria uma oportunidade impar de reconstrução de um partido diverso, vivo e politizado. Qualquer que seja o resultado das próximas eleições, a renovação (ou refundação) do partido e o fortalecimento de toda a esquerda e dos movimentos sociais será fundamental. (Se alguém pensa que tanto faz o resultado das próximas eleições tire a dúvida com o Chávez e o Evo Morales).
Finalmente, para não correr o risco de sermos cooptados pelas forças do atraso ou da pós modernidade, no campo institucional, torna-se inadiável a campanha nacional pela Reforma Política, em especial pela Reforma do Estado.

Ermínia Maricato é secretária-executiva na gestão de Olívio Dutra no Ministério das Cidades e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

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