"Dinheiro de campanha foi para todo mundo"
Fórum – O senhor conheceu o presidente Lula antes ou depois de entrar no PT?
Marco Aurélio Garcia – Em outubro de 1979, quando fui com um grupo ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo trabalhar em alguns documentos preparatórios do Movimento pró-PT. Conversamos e depois participei da reunião no Colégio Sion, em fevereiro de 1980, na formação do partido. Mas passei a ter um contato mais freqüente com o presidente Lula, de trabalho, em 1986, porque coordenei junto com o Pedro Dallari, Fábio (Konder) Comparato e José Eduardo Martins Cardozo, entre outros, o projeto de Constituição que o PT apresentou na Assembléia Constituinte.
Depois, em 1989, o acompanhei numa viagem que fez como candidato à Presidência da República à Europa. Foram três viagens naquela época, uma pela América Latina, uma pela Europa e outra aos Estados Unidos. A partir de 1990, fui integrado à Comissão Executiva Nacional e passei a me ocupar da Secretaria de Relações Internacionais, cargo que exerci durante dez anos. Em 1994, quando Lula disputou o governo, e também em 1998, a gente se via praticamente todos os dias.
Fórum – Quando o senhor chegou ao governo havia um debate midiático de que haveria choque entre o senhor e o embaixador Celso Amorim, exatamente por conta dessa sua proximidade com o presidente Lula. Pelo que parece, ao menos para quem está de fora, isso não existe.
Para quem está fora e para quem está dentro... (risos).
Fórum – Parece que se construiu uma política na área internacional que é elogiada pela esquerda e não é tão criticada, como outras áreas, pela oposição e pela direita.
Não, a direita agora está botando as manguinhas para fora. O outro candidato já está anunciando que vai promover a Alca, que vai fazer mudanças na política internacional, mas isso é normal. A relação (com o Amorim) foi e é muito tranqüila. Em primeiro lugar porque, evidentemente, eu tinha muito claro quais as competências que o presidente havia me delegado.
Eu, como colaborador e assessor do presidente, conhecia de longa data a diplomacia brasileira, até porque, nas muitas viagens que fizemos pelo exterior, sempre mantivemos um contato muito estreito com as embaixadas brasileiras. Conhecia também de longa data o ministro Amorim, acho que foi uma escolha muito judiciosa do presidente, a mais judiciosa que poderia fazer. Tínhamos uma afinidade muito grande, tanto política como pessoal, isso é sempre uma coisa que conta bastante.
Fórum – O senhor poderia relembrar aqueles dias do episódio da Venezuela, do locaute petroleiro, quando o senhor ainda nem estava empossado e já partiu para contribuir em uma situação continental-limite?
Foi uma situação sui generis, porque o presidente não havia assumido ainda, era dezembro, e ele quis fazer justamente uma sinalização naquele momento de que estávamos nos opondo à forma pela qual estava se procurando desestabilizar o governo Chávez. Eu não me lembro, mas tenho a impressão de que o Celso Amorim não havia sido formalmente indicado, mas ele já tinha sido escolhido.
Então, fui recebido pelo embaixador do Brasil na Venezuela, Ruy Nogueira, que teve uma conduta impecável, muito elogiado lá na embaixada naquele momento. Ele me organizou praticamente toda a agenda. E naquele período que passei na Venezuela falava pelo menos duas vezes por dia com o embaixador Celso Amorim. Foi um contato de informação muito concentrado nesse período. Evidentemente que tinha gente que estava torcendo para que nossa relação não desse certo, que houvesse choque, conflito, que eu fosse impulsionar uma diplomacia ideológica, coisas desse tipo, mas eram pessoas que não me conheciam.
Fórum – Quando é preciso negociar internacionalmente com forças políticas de esquerda o senhor é o homem indicado?
Não exatamente. Eu tive uma conversa muito boa com o (Gonzalo) Sanchez de Lozada (ex-presidente da Bolívia) no dia de sua queda.
Fórum – No dia da queda a tensão era incrível, não?
Sim, mas fui conversar com ele diretamente. Inclusive eu nem estive naquela ocasião com o MAS (partido do atual presidente Evo Morales e que liderou a derrubada de Sanchez de Lozada). Houve um incidente, fomos para lá num avião argentino, eu e um diplomata argentino, e chegamos para conversar diretamente com o presidente Sanchez de Lozada. Ouvimos muito o que ele tinha a dizer e expusemos as nossas inquietações, que não eram pequenas, sobretudo pelo fato de que já havia mais de 100 mortos naquele momento. Dissemos, “olha, vai ser muito difícil que o senhor tenha apoio internacional se continuar essa matança”.
Não sei até que ponto isso pesou na decisão dele, houve um certo exagero de alguns setores da imprensa, dizendo que tínhamos precipitado a sua queda, o que não é verdade isso. Conversamos com todas as forças políticas, com partidos de centro, de direita. Com o Evo eu não pude conversar, porque ele estava em Cochabamba e o nosso avião estava lá no aeroporto em El Alto (cidade vizinha a La Paz) e teve que decolar às pressas porque o aeroporto foi atacado.
O conflito era todo ali e nós saímos de El Alto de helicóptero, porque a estrada estava completamente interditada. Tivemos a informação de que tinha havido um ataque e o avião teve que decolar por questão de segurança do piloto. E aí, quando chegou a Cochabamba e ficou de voltar para nos apanhar, o avião pifou. Então, o máximo que pude fazer foi conversar por telefone com o Evo e o Felipe Quispe (outra liderança indígena importante e que também foi candidato a presidente nas últimas eleições). Mas com todos os demais tive encontros pessoais, passei pouco mais de 24 horas, mas foi como se tivesse passado dez dias.
Fórum – Essa conversa com o Gonzalo Sanchez de Lozada foi difícil por causa de momento ou porque o governo brasileiro imaginava que podia ser dado um golpe? Chegou a se cogitar uma saída dura, militar, para que ele permanecesse?
Ficamos tranqüilos sobre isso porque quando saímos do aeroporto de El Alto, nosso helicóptero aterrissou numa base militar. E enquanto esperávamos para ser transportados até a residência do presidente, porque não se podia mais ir ao palácio, conversamos com um coronel do exército. E sentimos claramente que o clima não era para um golpe de Estado, mas sim um clima de preocupação com a matança na cidade. O problema que estava colocado naquele momento era a possibilidade de que, se o Sanchez de Lozada não renunciasse, provavelmente haveria uma insurreição. Esta foi a percepção que tivemos quando conversamos sobretudo com o núncio apostólico e o bispo de El Alto. Aliás, foi durante essa conversa que tive a informação de que o Sanchez de Lozada estava escrevendo a carta de renúncia.
Fórum – Aliás, parece que o Sanchez de Lozada pegou o avião primeiro e mandou entregar a carta depois de ter saído do espaço aéreo boliviano?
Pegou o meu helicóptero, isso é que foi o pior (risos). Era o helicóptero que eu queria pegar em El Alto para ir para Cochabamba visitar o Evo. Mas isso teve um aspecto positivo, porque ficamos em La Paz e pude assistir à posse do presidente, fui o primeiro a ser recebido pelo presidente (Carlos) Mesa, às duas da manhã.
Fórum – Voltando ao locaute petroleiro, aquele era um momento difícil pois havia muitas críticas à esquerda e à direita à sua participação nas negociações e em relação à criação do Grupo dos Amigos.
Quando estive na Venezuela, uma das questões que discutimos foi justamente a possibilidade de criação de um grupo de amigos. Mas como uma tese geral, que amadureceu posteriormente durante a posse do ex-presidente Lucio Gutiérrez, no Equador. Tivemos um almoço com o Chávez e dissemos que iríamos propor a criação de um grupo de amigos, etc. Houve uma reunião de vários presidentes, estava o (Ricardo) Lagos (do Chile), o (Álvaro) Uribe (da Colômbia), a Nina Pacari, ministra das Relações Exteriores do Equador, enfim, vários presidentes presentes.
E se chegou a uma conclusão, uma proposta do ministro Amorim que teve o respaldo enfático do presidente Lula, de criar um grupo de amigos que fosse equilibrado. Nele estariam México, Espanha, Chile, Brasil e os Estados Unidos. A Espanha que tinha, inclusive, de certa maneira, respaldado o golpe. O Chávez tinha viajado para os Estados Unidos naquela noite e não gostou da idéia de criar esse grupo. Disse que era uma barbaridade. Tivemos nessa noite também uma reunião complicada com o Fidel, ele se opondo firmemente e, no meio da reunião, o Chávez telefonou e aí então combinamos que ele viria no dia seguinte ao Brasil.
Tivemos uma longa reunião num sábado de manhã, aqui no Torto, na qual se chegou a um consenso. O Chávez disse que não estava de acordo com a composição do grupo, mas aceitou. Saiu, depois, e disse “confio no Brasil”. Acho que a confiança que ele depositou no Brasil e naquela composição do grupo de amigos terminou sendo boa para o resultado final. Porque o grupo de amigos se reuniu, foi presidido aqui, e até o Colin Powell ajudou um pouco no sentido do que se moderou. Se compararmos o comportamento dos Estados Unidos naquele momento e no desdobramento posterior, a gente percebe que houve um encaminhamento para a solução defendida pelo próprio Chávez, que foi o referendo. Do ponto de vista institucional ficou resolvido.
Fórum – Alckmin, como o senhor disse, já fala em retomar a Alca. Ainda há pressão para firmar esse acordo por parte de setores da indústria, do setor financeiro, do empresariado?
Não sei se a indústria está interessada nisso, não acho, pelo contrário. Aliás, acho que muitas das pessoas, muitos dos setores empresariais que defendem a Alca o fazem por razões puramente ideológicas, sem se dar conta principalmente do impacto que teria sobre o setor específico. Bancos, por exemplo.
Fórum – No México sobraram quantos bancos nacionais?
Exatamente. Então tem que perguntar para o senhor Olavo (Setúbal) o que é que vai se passar com os bancos se a Alca vier.
Fórum – Como o senhor vê a decepção de setores de esquerda com o partido no governo. Não tem fundamento?
Em 2002, estávamos à beira de um novo colapso que podia ter tido dimensões semelhantes à da Argentina, que já se havia anunciado um pouco em 1998, quando perdemos US$ 40 bilhões em um mês e meio. Tudo isso fez com que a candidatura do Lula e do PT galvanizasse uma enorme energia no país e fosse, naquele momento, depositária de uma gigantesca expectativa e esperança. Por outro lado, estávamos constrangidos a enfrentar uma ameaça conjuntural, que era uma ameaça pesada.
Pode pegar todos os dados macroeconômicos daquele momento, o dólar disparando a quase R$ 4, um déficit nas contas externas de US$ 38 bilhões, o risco Brasil em 2.400 pontos, enfim, estávamos em uma situação tenebrosa, com a inflação subindo em flecha. E o que muitos apostavam era exatamente de que o governo desses esquerdistas ia emplacar uma inflação de 10% ao mês e desandar tudo. E teríamos carimbado que a esquerda realmente não serve para governar. Por isso, fizemos um esforço muito grande para que isso não acontecesse, o que nos obrigou a lançar mão de algumas medidas que não fazem parte do nosso arcabouço de soluções, mas tivemos que fazer e foi a atitude correta. O que se pode discutir, e discuto muitas vezes, é se a dose foi acertada. Acho que poderíamos ter reduzido os juros um pouco antes, acelerando essa velocidade.
Enfim, tem uma série de coisas que poderiam ter sido feitas sem prejudicar a preocupação global de manter as coisas relativamente equilibradas, porque isso significava criar um piso a partir do qual enfrentaríamos os temas mais fundamentais, abordando aquelas questões que integram o que chamamos de projeto nacional de desenvolvimento.
O segundo problema, que acho mais complicado, pelo qual tenho insistido sem nenhuma dificuldade em falar, é que acho que revestimos a política econômica, em muitos momentos, com um discurso muito conservador. Poderíamos ter feito exatamente as mesmas coisas, um pouco menos, um pouco mais, com outro tipo de linguagem.
Acho que isso tem a ver um pouco com a própria composição da equipe econômica. Tem a ver, a meu juízo, com uma preocupação equivocada no sentido de tranqüilizar os mercados e os mercados não precisam de ideologia, eles sabem exatamente quem está fazendo as coisas e quem não está fazendo. Tem outros governos com uma linguagem muito mais à esquerda e que têm uma política substantivamente muito mais à direita que a nossa. Não vou dar nenhum exemplo, mas vocês farão as pesquisas e descobrirão.
Fórum – O sociólogo venezuelano Edgardo Lander, em recente entrevista à Fórum, cita o caso da Argentina, dizendo que o “capim do vizinho costuma ser mais verde” (quando o repórter perguntou se a política econômica argentina não era menos ortodoxa que a brasileira)?
Procurem ver superávit primário, Banco Central independente, uma série de coisas que não são monopólio nosso. Chamo sempre a atenção para os discursos do presidente de fim de 2003 para 2004 ou de 2004 para 2005, onde ele, de certa forma, anunciava basicamente quais eram as intenções do governo. Acho que ali e em muitas outras ocasiões ele balizou outro tipo de linguagem. Foi um discurso de final de ano, que ele reuniu o ministério na Granja do Torto, mas não se restringe a esse.
Em vários outros pronunciamentos sempre colocou concretamente, digamos, uma visão mais de desenvolvimento do país. Acho que essa linguagem um pouco contida, um pouco enviesada que a gente teve, nos impediu de aproveitar, do ponto de vista popular, uma série de conquistas importantes. Uma delas é a diminuição da vulnerabilidade externa, isso é fundamental, é uma bandeira da esquerda. A outra é a própria forma como nos relacionamos com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Aí o nosso vizinho fez uma grande festa para dizer, “olha, nós saímos do Fundo”. Quanto a nós, saímos muito timidamente, quase pedindo desculpas. Muitas vezes tentam me apresentar como responsável pelo fogo amigo.
Nunca seria ministro da Fazenda, mas, só como exercício de reflexão, se eu fosse, provavelmente faria uma política muito parecida com essa, com outras inflexões, com um discurso totalmente distinto. Não estou aqui utilizando discurso como uma forma de enganar os eleitores, para fazer uma política de um jeito e um discurso de outro. Não, o discurso na política é algo fundamental, é um componente substancial. Isso é tão verdade que se faz muitas vezes um discurso conservador para tranqüilizar as pessoas. Mas intranqüiliza outros. O que, a meu juízo é relevante, é que, a despeito de todas essas dificuldades e até dos erros que cometemos, o governo deu um belíssimo salto de realizações a ser apresentadas.
Alguém vai me dizer que o país continua um horror, a tragédia brasileira é grande... É, mas é menor. Outro dia, o presidente usou uma imagem muito interessante, ele disse: “Eu me sinto às vezes como se estivesse andando numa Ferrari com o freio de mão puxado". É verdade, porque introduzimos uma série de elementos de forte dinamismo de expansão da renda que teria impacto sobre o crescimento, e ao mesmo tempo tínhamos algumas orientações de caráter macroeconômico, de caráter recessivo, como a taxa de juros e a execução orçamentária. No fundo, esse equilíbrio ainda tem um saldo positivo. No próximo governo, vamos ter de enfrentar outros desafios importantes. Acho que um assunto social que começou a ser muito bem tratado é o da educação. Educação, tecnologia, ciência e cultura. Temos de marchar para um grande projeto de uma sociedade de conhecimento, que vai ter não só um impacto econômico e social de incluir gente, mas terá, sobretudo, um impacto político. Essa sociedade de conhecimento é condição necessária para efetivar a generalização da soberania do país.
Fórum – A política econômica poderia acompanhar a política externa?
Eu disse em determinado momento que a política externa era a ponta do iceberg (risos). Talvez esteja mais tranqüilo porque acho que na política externa conseguimos fazer aquilo que, de certa forma, havíamos anunciado. Aliás, até analistas que não têm simpatia pelo PT têm dito isso.
Fórum – O senhor se surpreendeu com o tipo de oposição que o PSDB está fazendo ao governo Lula?
Não, não. Houve um momento no passado em que essa aproximação PT e PSDB poderia, teoricamente, ter se solidificado. Isso foi em 1993. Lembro que naquele momento conversamos com o Tasso (Jereissati) e me envolvi um pouco nisso. Tivemos encontros com o Sérgio Motta, com o (Luiz Carlos) Bresser Pereira e fizemos até reuniões conjuntas de programa de governo. Mas não prosperou. Até porque no fim a aproximação não era o sentimento majoritário dos dois partidos. Depois, teve um dado essencial, que foi a ida do Fernando Henrique para o Ministério da Fazenda e a viabilização de sua candidatura. Por outro lado, o Lula era um candidato forte.
Mas tivemos conversas. Tivemos uma na França, uma vez, com o Fernando Henrique e o (Euclides) Scalco, pelo PSDB, e o Lula e eu, pelo PT, para tentar fazer uma aproximação. Foi em um encontro de partidos de esquerda organizado pelo PS francês. Mas aí, 15 dias depois de termos conversado, para tentar inclusive fazer uma política comum de oposição ao Collor, o Fernando Henrique se apresentou para ser ministro do Collor. Sorte para ele que o Covas e outros não deixaram. Mas não digo isso do ponto de vista crítico, acho normal. Se achou que podia levar o PSDB para o governo naquele momento e levou, normal, ganhou a disputa naquele momento.
Hoje acho muito difícil, se criou um nível de incompatibilidade muito grande entre os dois partidos. O que haverá, sem dúvida nenhuma, é uma possibilidade de que setores, que socialmente muitas vezes se identificaram e votaram no PSDB, possam ser repatriados, digamos, para o PT. Sem dúvida nenhuma, alguns que provavelmente acompanhariam o Serra não vão acompanhar o Alckmin. Por várias razões: pelas opções de política externa dele, por uma série de opções de política econômica, pela retomada das privatizações e também pelo conservadorismo intrínseco do Alckmin. Essas coisas de Opus Dei, tradição, família e não sei o que mais. Além de direitos humanos, área onde o retrospecto do Alckmin é muito ruim.
Fórum – O senhor acha que essa polarização de centro-direita x centro-esquerda é o dado da eleição deste ano, sem lados extremos, mas com distinções claras?
Acho que será um componente, não será provavelmente o único porque a sociedade brasileira não é muito ideologizada. Diferentemente de outros países da América Latina, não temos referências político-ideológicas permanentes. O PT talvez seja uma delas, mas uma referência recente, de 26 anos, enquanto na Argentina existe o peronismo e o radicalismo, aliás, o Perón dizia: “essa história de que fulano é de direita e de esquerda não importa. O que importa é que todos são peronistas" (risos).
Esses ambientes, essas culturas políticas que são freqüentes em outros países, como no Uruguai, onde há os blancos e os colorados há muito tempo. Para se ter uma idéia, a Frente Ampla que só agora elegeu um presidente, o presidente Tabaret Vazquez, tem 30 anos. Ou o socialismo e a democracia cristã no Chile, a Apra no Peru... No Brasil, não há esse tipo de referências. O PT é um fenômeno interessante, quando num período relativamente curto, do ponto de vista histórico, consegue adiantar uma coisa que não foi destruída, inclusive, pela crise do ano passado. Mas, voltando às eleições, elas terão alguns componentes de polarização social, sem dúvida nenhuma, que já aparecem nas pesquisas. Mas é indesejável que tivéssemos uma eleição simplesmente polarizada entre ricos e pobres.
Fórum – Seria a repetição do recente fenômeno venezuelano.
E não seria bom. Mas acho que ele não se repetirá, porque temos uma sociedade um pouco mais complexa.
Fórum – Quais são as novidades do programa que está sendo construído para um eventual segundo mandato?
Esses elementos que mencionei, de um tônus mais forte nas pressões de crescimento, de distribuição de renda com manutenção do combate à vulnerabilidade externa. Também acho que deveríamos enfatizar as questões em torno dos temas da educação e qualidade da administração, sobretudo.
Acho que isso aí vai incidir muito sobre o problema da educação fundamental, para qual temos agora um instrumento de melhoria, que é o Fundeb. Mas também é necessário vincular isso à ciência e tecnologia. Temos de fazer isso e não é tanto porque vamos ficar atrás do resto do mundo, isso é uma coisa tupiniquim de ficar preocupado porque estamos perdendo para Coréia, para não sei quem, mas o problema é não perdermos para nós mesmos, não aproveitarmos o grande potencial que temos.
Fórum – E em relação à polêmica da sua entrevista às pesquisadoras inglesas (Hilary Wainwright e Sue Branford)?
Aquilo ali eu não entendo, porque a polêmica se armou simplesmente porque um jornalista (Fábio Victor, da Folha de S. Paulo) mal preparado ou mal intencionado fez uma leitura absolutamente enviesada do depoimento, que não sei se você leu o depoimento...
Fórum – O depoimento dá idéia de que haveria um certo encastelamento da direção do partido.
O problema é o seguinte, esse menino da Folha fez um trabalho impressionante. Fizeram um erramos dizendo que, na tradução que fizeram, faltou a palavra “não” (risos). É demais, né?
Como se isso não mudasse todo o sentido. O que coloquei sobre a situação do PT basicamente é o seguinte: qual foi o problema que enfrentamos? Enfrentamos um problema que já tinha ocorrido em outras circunstâncias em que o PT ganhou eleições e parte da direção foi para o governo. No nosso caso, aqui, é evidente: grande parte dos ministros que estava aqui era quadro importante para a Direção Executiva, que saíram da gestão do partido.
O presidente (José) Genoino, que é um homem decente, uma pessoa íntegra, por mais que queiram atingi-lo e nunca vou concordar com isso, foi frágil na sua relação com o governo. Em primeiro lugar, não estava apoiado por uma direção à altura, era muito fraca, e não manteve uma interlocução forte, no sentido de que uma interlocução com o governo tem que ser: partido é partido e governo é governo.
Então o presidente do partido tem que levar ao governo determinadas situações, falar “olha, seu presidente, não estamos de acordo com tal coisa que esteja sendo feita na área econômica, na política de saúde, e isso e aquilo”. Ou então diga “ótimo, estamos apoiando isso aqui, vamos fazer uma mobilização”. O partido não foi capaz nem de mobilizar a sociedade em apoio ao governo e nem de transmitir demandas da sociedade junto ao governo. Esse é um erro fundamental.
Em segundo lugar, o Genoino, e isso ele revelou publicamente, não cuidava muito da questão interna partidária. Então isso ficou nas mãos de um grupo que se associou a aventureiros. Não tenho nenhuma dúvida de que o Delúbio (Soares) não botou dinheiro no bolso dele, não tenho nenhuma dúvida disso. Pode ter feito é qualquer quantidade de trapalhadas, de irregularidades, de ilegalidades etc. etc., mas não em benefício próprio. Agora, é um caso agudíssimo de gestão temerária que resultou numa crise.
Fórum – Quando o Delúbio Soares tinha as contas nas mãos, os que tinham acesso aos recursos eram pessoas ligadas ao grupo político do qual ele participava. Houve setores que ficaram fragilizados na disputa interna, no debate da política, porque também não conseguiam eleger seus candidatos...
Na direção, e isso é uma das coisas que já mencionei, os caras que estavam com uma posição muito crítica ao governo, à direção, também recebiam bons salários. Tinha muito salário maior que o meu. Em segundo lugar, dinheiro de campanha foi para todo mundo.
Fórum – O PT chegou ao poder sem uma grande pressão popular, isso não virou um problema, já que o governo tinha que lidar com a pressão da direita e da elite e não tinha uma contrapressão das ruas que poderia equilibrar o jogo?
Isso é parcialmente verdade. Mas acho que aí tem várias coisas. Em primeiro lugar, um governo é sempre mais tradicional que um partido na oposição. Tem que ser. Eu, quando chego aqui de manhã, não tenho espaço para ficar inventando muita coisa. Então, por isso mesmo, o governo tem que ser pressionado. Quando discutimos o salário mínimo, tínhamos de um lado o constrangimento financeiro e de outro o constrangimento das ruas. Não que as ruas estivessem reclamando tão fortemente, mas, na cabeça do presidente, ele tem compromissos históricos, não pode chegar aqui e dizer que não vai ter aumento do salário mínimo. Venceu esse constrangimento da sociedade. Ótimo.
É possível que tivéssemos um tipo de constrangimento maior e o partido tinha que ser um dos instrumentos privilegiados para exercer esses tipos de constrangimento, que são normais, legais, legítimos, saudáveis. Houve determinado momento, inclusive, que me senti incomodado, um pouco antes da crise, em junho do ano passado. Naquele momento, havia um documento que estava circulando dentro do partido, que seria supostamente do Campo Majoritário, de algumas pessoas que tinham perdido totalmente qualquer visão crítica da situação.
E o partido tem que ter uma visão crítica, por mais partido de governo que seja, por mais apoio que ele dê e que tem que dar ao governo. Porque, se ele não tiver essa visão crítica, não vai ter capacidade de apoiar efetivamente, vai ser uma vaca de presépio. Nós não precisamos de um partido vaca de presépio. Precisamos de um partido que tenha presença política.
Fórum – Por fim, o senhor acha que essa política de integração continental se mantém num governo de outra origem partidária, em um governo mais à direita?
Não, não se mantém. Não tenha dúvida, porque a política de integração é uma política que a esquerda sabe fazer. E a direita não sabe. Sobretudo uma direita preconceituosa, de riquinhos. Nós vamos enfrentar uma turma de riquinhos. E isso não é uma tarefa para esse pessoal da Daslu.
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