Continuação
Verificando a Lei n° 9.985/2000 – SNUC, que regulamenta o art. 225 da CF, em seu CAPÍTULO II,- Do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, onde no Art. 4º, incisos IV, V, X, XI, XII, XIII estabelecem entre os seus objetivos: promover o desenvolvimento sustentável a partir dos recursos naturais; promover a utilização dos princípios e práticas de conservação da natureza no processo de desenvolvimento; proporcionar meios e incentivos para atividades de pesquisa científica, estudos e monitoramento ambiental; valorizar econômica e socialmente a diversidade biológica; favorecer condições e promover a educação e interpretação ambiental, a recreação em contato com a natureza e o turismo ecológico; proteger os recursos naturais necessários à subsistência de populações tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente.
Nos dispositivos citados, além da clara referência às populações tradicionais, há um vivo encadeamento da promoção de práticas que promovam o desenvolvimento sustentável e valorização social e econômica da diversidade biológica. Este processo deve começar, obviamente, pelas populações locais, detentoras do direito a uma vida com dignidade.
Na realidade não poderia existir um sistema de unidades de conservação que exclua a princípio populações que representam a riqueza da diversidade humana e cultural da Mata Atlântica, que desenvolveram durante gerações práticas que se apresentam harmônicas com o ambiente, e muito têm que contribuir com o processo de desenvolvimento de conceito de sustentabilidade. Somente aquelas populações que sejam incompatíveis com estas é que o sistema exclui. Aliás, essa regra de ouro tem, na realidade, fundamentos constitucionais muito mais largos no que tange ao respeito a estas populações tradicionais, pois estas se identificam com parcelas significativas da população nacional, que de longa tradição eram consideradas como subculturas, sem referência explícita como formadoras da cultura nacional, como podemos agora inventariar no texto constitucional de 1988.
De fato, não bastaria o constituinte elencar os Princípios Fundamentais da República, que se constitui em Estado Democrático de Direito, estabelecendo como fundamentos a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e estabelecer que todo o poder emana do povo (Art. 1o.), sem estabelecer de forma mais objetiva como realizar esses fundamentos. Assim, o seu art. 3º estabeleceu como objetivos fundamentais da República: construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, além de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
No que tange à cultura, temos dois dispositivos que sintetizam bem o reconhecimento dessa diversidade humana, que as populações tradicionais representam, como um patrimônio que deve ser observado em qualquer tipo de ação do poder público, onde se insere a criação de unidades de conservação.
O primeiro dispositivo é o art. 215, § 1º, que preceitua que o Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional, complementado pelo art. 216, que preceitua que constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver. Ora o ser humano somente constrói a cultura na relação com o espaço onde vive, desenvolve a luta na construção diária da sua dignidade. Assim apresenta grave violação destas normas constitucionais a pretensão de se criarem unidades de conservação cujo conceito não admite a presença humana e que levaria a necessidade de realocação, indenização de comunidades tradicionais, olvidando que o texto constitucional acentua estas especiais regras de proteção das minorias, que justamente integram estas populações tradicionais, e, como destaca a lei do SNUC, abraça formas de unidades de conservação que são adequadas à presença destas comunidades.
No caso das populações tradicionais, entre os conflitos que se apresentam da eventual luta pelo direito de propriedade, devemos observar que se apresenta a busca pelo registro imobiliário a favor da comunidade apenas como um meio executivo de estabilizar o seu direito de viver com dignidade, logo este não é o seu objetivo, o que lhes interessa é a estabilidade na sua posse.
O legislador, ao permitir determinada presença humana e a possibilidade de domínio ou posse em áreas de unidade de conservação, considera a posse em si mesma como elemento legitimador de outros direitos, inclusive o de propriedade, que somente é considerado respeitada sua função social se acompanhado de uso que o legitima social e ambientalmente. Assim, o que justifica o exercício do direito à propriedade ou à posse nestas áreas é a relação direta com o objeto, portanto, não é a propriedade enquanto domínio que legitima a posse, mas o inverso, a posse, o uso efetivo do bem, como utilidade social, é que legitima a propriedade ou domínio. Portanto, é neste prisma dado que o legislador define quais unidades de conservação terão domínio público ou privado, de forma exclusiva ou conjugada, e quais os casos em que será permitido o exercício da posse ainda que a área seja de domínio público, o que corresponde a admitir a presença humana.
Na leitura do texto constitucional fica bem claro que o constituinte abandonou a teoria possessória comum ou civilista centrada em função da propriedade. Preferiu apostar na posse como expressão da função social da propriedade, em respeito ao direito constitucional das presentes e futuras gerações ao meio ambiente sadio e equilibrado. Portanto, a regularização fundiária das unidades de conservação possui por finalidade antes de definir se o domínio é público ou privado, permitir que essa definição de domínio seja a mais compatível com o uso que, além de favorecer a conservação ambiental, assegure o exercício do direito de viver com dignidade da nossa população. No caso, com enfoque especial, às comunidades tradicionais, cujas formas de uso e relação com a natureza apresenta-se compatível com as finalidades desses institutos.
Destaca-se que, embora o nosso legislador não tenha definido diretamente o que sejam populações tradicionais, apresenta no artigo 20 da Lei do SNUC quais os elementos que caracterizam esta, quando definiu o que seja uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável, pois apesar de inserir o conceito destas populações integrando essa modalidade específica de Unidade de Conservação, o seu conceito pode ser muito bem tomado como norte seguro para constatarmos que a sua concepção está de acordo com o que vimos expondo.
Preceitua o art. 20:
“Art. 20 - A Reserva de Desenvolvimento Sustentável é uma área natural que abriga populações tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às condições ecológicas locais e que desempenham um papel fundamental na proteção da natureza e na manutenção da diversidade biológica”.
Observa-se pela leitura do dispositivo legal que estas populações tradicionais possuem como características uma existência baseada em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às condições ecológicas locais e que desempenham um papel fundamental na proteção da natureza e na manutenção da diversidade biológica. Portanto, em pleno acordo com a nossa concepção de que estas comunidades, muito mais do que entraves à conformação de eventuais unidades de conservação, devem ser valorizadas como forma de reverência aos ditames constitucionais de dignidade da pessoa humana e respeito àquelas minorias e culturas que o constituinte colocou em especial guarda como integrantes do processo civilizatório nacional. E nada mais contraditório do que encarar esse patrimônio humano, que arrastou consigo a língua portuguesa pelos rincões da Mata Atlântica, como condicionante negativa, mas sim, como uma condicionante positiva prévia na definição de qual tipo de Unidade de Conservação mais adequada a ser criada.
Na observação dessas populações, verifica-se uma prática possessória diferenciada, a que chamaremos de posse agro-ecológica. A posse agro-ecológica exige uma apreensão imediata e direta sobre o imóvel, mas não necessariamente exclusivista sobre as áreas de uso comum. A relação entre o homem e o ambiente é direta, física, revelada por atos materiais. Por outro lado, o fator subjetivo da posse, o animus, a intenção, é representada por identificar o local onde vive para além do simples espaço onde reside, mas sem que isso importe a intenção imediata de exercer o direito de propriedade como se fosse seu titular (animus domini) e de forma exclusiva. Muito menos é detentor da vontade de proceder como habitualmente faz o proprietário (affectio tenendi). A intenção do possuidor agro-ecológico é de ter um lugar onde possa viver com dignidade como os seus antepassados, após cada dia de luta pela vida em práticas adequadas na conservação dos recursos ambientais.
Portanto, essa posse agro-ecológica é evidente quando temos famílias que exercem a posse coletivamente num imóvel, respeitando cada um os seus espaços, não por ver no outro um proprietário, mas por reconhecerem-se mutuamente como da mesma origem histórica que trocam as experiências do dia-a-dia de conviver social, cujo pleito perante o Estado, por meio da sua entidade competente, objetiva, no mais das vezes, antes do domínio, a concessão de estabilidade do direito de viver com dignidade.
Jairo dos Santos – PT
Vereador
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