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quarta-feira, maio 31, 2006

Sobre leis bastardas

Continuação
O leitor sabe o que é isso ou dela alguma vez já ouviu falar? Surpreendo-me ao constatar que, mesmo entre pessoas esclarecidas, o desconhecimento sobre tal lei é muito grande, embora ela afete a nossa vida e, todos os dias, a população sinta seus efeitos e se indigne com eles. Eu fiquei sabendo dela por volta de 1989, ao ler um jornal e, pasmado, ver que o presidente de então sancionara uma versão revista e piorada pela qual, entre outras pérolas, um condenado pode deixar a prisão depois de cumprir em regime fechado apenas um sexto do tempo a que foi condenado. Num país como o Brasil, onde a pena máxima, pela Constituição, é de 30 anos, significa que ninguém fica atrás das grades por mais de cinco anos, exceto os muito pobres.
Querem um exemplo desta lei bastarda em ação? Há alguns anos, os anões do orçamento praticaram seu assalto aos cofres públicos utilizando a assessoria, soi-disant, "tecnológica" de um funcionário público. Esse consultor dos anões, adicionalmente, matou a esposa e escondeu-lhe o cadáver. Condenado, ficou um par de anos na prisão e obteve liberdade condicional. Para tanto era necessário provar que obtivera um emprego, o que não foi problema: seu advogado o contratou para seu escritório. Nada de errado: tudo dentro da lei. Querem mais? Os assassinos do índio Galdino, os assassinos de Daniela Perez e tantos outros, soltos por aí, dentro da lei...

Quando a população clama contra estes absurdos, imediatamente algum sábio de plantão aparece na imprensa e, olhando a todos nós do alto de seu nariz e com profundo desprezo por nossa ignorância, sentencia: "Não é a severidade da pena, mas a certeza da punição que inibe o crime." Se certeza há no Brasil, ela é a da impunidade... O leitor, por acaso, notou a celeridade com que criminalistas, no auge dos ataques do PCC a São Paulo, correram à TV para repetir o bordão?
Esclareçamos isso. Este é mais um exemplo odioso de uso maldosamente distorcido de uma idéia bem-intencionada. Em 1765, o filósofo italiano Cesare Bonesana, marquês de Beccaria, escreveu um célebre livro chamado Dos Delitos e das Penas, onde combateu as injustiças da legislação criminal da época, como a tortura, as penas infamantes ou cruéis, os julgamentos secretos, etc. Foi naquele contexto que ele escreveu que "não é o rigor do suplício que previne os crimes", frase da qual certamente estaria arrependido se soubesse que, no Brasil, é usada para patrocinar a impunidade.
É claro que Beccaria escreveu que a severidade da pena deve ser proporcional à gravidade do delito, ou que, "quanto mais pronta for a pena e mais de perto seguir o delito, tanto mais justa e útil será", ou que "... o perdão... não pode destruir a necessidade do exemplo", etc. Mas isso é convenientemente esquecido. Aliás, o que indigna a população é a absoluta desproporcionalidade entre a gravidade de crimes brutais e a brandura das penas, além da interminável procrastinação dos julgamentos.
Duas são as principais razões por que se produziu essa lei no Brasil. A primeira, tipicamente brasileira, é a inapetência por tratar qualquer coisa com seriedade: como há poucas vagas nas cadeias, soltam-se os meliantes, mesmo os assassinos, e a sociedade que se dane. A segunda é uma visão absolutamente esdrúxula de que "o objetivo da pena é a recuperação do condenado". Transfere-se para o Estado a obrigação de recuperar até aqueles que já fizeram uma opção definitiva por predar a sociedade (alguma dúvida?), quando, em qualquer lugar onde prevaleça o bom senso, se sabe que o objetivo da punição é fazer ver a todos que o crime não compensa e proteger as pessoas de bem da sanha dos que as ameaçam. A oportunidade de recuperação deve ser dada: aceita quem quer.

Para aliviar esse abominável quadro se promulgou, em 25 de julho de 1990, a chamada Lei dos Crimes Hediondos, cujos praticantes estariam excluídos das benesses mencionadas. Funcionou por algum tempo, mas, como estamos no Brasil, a partir de certo ponto juízes passaram a descumpri-la, por a considerarem inconstitucional. Finalmente, pouco antes do carnaval deste ano, por 6 a 5, o Supremo Tribunal Federal decretou que também os perpetradores de crimes hediondos, como assassinatos qualificados, seqüestros, tráfico de drogas e análogos, têm direito à "progressão das penas", ou seja, saem logo da cadeia. Ainda segundo o Supremo, para que os criminosos hediondos não gozem da generosa detenção por apenas um sexto da pena, é preciso fazer uma lei específica, mas sempre obedecendo ao princípio da progressão.
Neste momento, tramitam no Congresso duas propostas: a do governo, estabelecendo o regime fechado durante um terço da pena para os réus primários e metade da pena no caso de reincidentes; e a da oposição, um pouco menos generosa, que fixa a metade para réus primários e três quartos para reincidentes. Sim, leitor, você leu corretamente: em ambas as propostas, nem mesmo criminosos hediondos reincidentes cumprirão suas penas até o fim.
Enquanto a Nação clama por justiça e nada se faz, só nos resta prestar solidariedade moral às famílias das vítimas e amaldiçoar os que criam e os que perpetuam nossas leis bastardas.


Gilberto Geraldo Garbi é engenheiro e empresário
ggarbi@terra.com.br

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